Ministério Público já apura denúncia de que o hospital pertence ao próprio prefeito, que antes era administrador da unidade e recebia repasses da prefeitura. Decisão do TJ-GO revela que o problema pode ser estrutural — e não apenas administrativo.
A decisão do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) que determinou a intervenção no Hospital Sagrado Coração de Jesus (HSCJ), em Nerópolis, é apenas a ponta de um escândalo que, se aprofundado, pode revelar um modelo de gestão pública privada de fachada — uma simbiose perigosa entre o poder político local e o dinheiro da saúde.
O hospital, alvo de investigação judicial e de uma denúncia já existente no Ministério Público, seria de propriedade do próprio prefeito. Antes de assumir o cargo, ele atuava como administrador da unidade e, segundo a apuração, continuou recebendo repasses municipais destinados ao hospital após assumir a prefeitura.
Ou seja, o prefeito assinava o cheque e recebia o cheque, numa relação de autocontratação ilícita que fere de morte os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade.
⚖️ Intervenção Judicial: um freio necessário
O desembargador Altamiro Garcia Filho, relator do caso, determinou o afastamento do diretor-geral Natan Francisco de Carvalho, acusado de irregularidades administrativas, confusão patrimonial e uso indevido de recursos públicos para benefício pessoal e de sua companheira, Elisa Maria Caetano Rosa, ex-vereadora e ex-candidata à prefeita, conhecida como Elisa da Saúde.
O magistrado também nomeou Stenius Lacerda Bastos como interventor judicial por seis meses, com a missão de realizar auditoria financeira e contábil completa, identificar passivos, ativos e possíveis desvios, e apresentar relatório preliminar sobre a situação econômica da instituição.
A decisão do TJ-GO é clara: há atos que podem contrariar os interesses da entidade e comprometer sua função social — em outras palavras, o hospital estaria sendo usado para fins privados e políticos, não para servir à população.
💰 O elo mais grave: repasses públicos e conflito de interesses
O que transforma o caso de Nerópolis em um escândalo de proporções muito maiores é o elo entre o hospital e o gabinete do prefeito.
Segundo a denúncia encaminhada ao Ministério Público, o hospital é formalmente uma associação privada, mas de fato controlada pelo prefeito, que antes administrava a entidade e manteve poder de influência sobre suas decisões financeiras.
Assim, os repasses da prefeitura ao hospital acabam voltando para as mãos do próprio prefeito, criando uma espécie de “circuito fechado de dinheiro público”, disfarçado sob o nome de filantropia.
Esse tipo de operação, além de configurar enriquecimento ilícito (Lei 8.429/1992, art. 9º), também pode caracterizar crime de responsabilidade (Decreto-Lei 201/1967, art. 4º, VII e VIII) e violação direta ao art. 37 da Constituição Federal, que impõe a moralidade e a impessoalidade como fundamentos da administração pública.
🧩 O papel da “companheira” e a rede de beneficiários
O nome de Elisa Maria Caetano Rosa, ex-vereadora e ex-candidata à prefeita, aparece no despacho judicial como beneficiária de pagamentos pessoais realizados com recursos do hospital.
A presença de Elisa, historicamente ligada à política local, reforça a suspeita de que o hospital foi transformado em instrumento de poder e de financiamento político, operando na sombra da legalidade e com aparente anuência do Executivo municipal.
O Ministério Público agora deve cruzar os dados de repasses municipais, contratos e extratos bancários da entidade, para comprovar se há autocontratação, nepotismo indireto ou lavagem de dinheiro por meio de verbas da saúde.
🔍 O fio da meada: a captura da saúde pública por interesses privados
O caso de Nerópolis não é isolado. Goiás vive, há anos, uma epidemia de privatizações disfarçadas na saúde municipal, em que prefeitos, ex-secretários e aliados políticos controlam Organizações Sociais (OSs) e associações “filantrópicas” que recebem milhões de reais em repasses públicos.
Essas entidades operam como instrumentos de poder político, com orçamentos vultosos e pouca transparência.
Em muitos casos, a prestação de contas é feita por quem também se beneficia dos contratos, criando um ambiente fértil para corrupção silenciosa e enriquecimento institucionalizado.
🧠 Opinião
O que está em jogo em Nerópolis não é apenas um hospital em crise — é o modelo de gestão da saúde pública em Goiás, capturado por redes políticas que tratam o dinheiro público como propriedade privada.
A intervenção judicial, nesse contexto, não é o fim, mas o começo da desintoxicação de um sistema viciado em desvio e autoproteção.
Se a denúncia do Ministério Público se confirmar, o caso pode se transformar em um dos mais graves episódios de conflito de interesses no interior goiano, abrindo caminho para ações de improbidade, bloqueio de bens e até cassação de mandato.
O Hospital Sagrado Coração de Jesus, ironicamente, virou símbolo de um problema que sangra a saúde pública: a confusão entre o que é do povo e o que é do poder.

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