Enquanto o discurso oficial insiste em “modernização da gestão da saúde”, os documentos revelam uma realidade bem menos palatável: milhões de reais em contratos públicos concentrados nas mãos de Organizações Sociais, com baixa transparência sobre subcontratações e um ambiente político onde o poder apenas troca de cargo — não de influência.
O caso do Instituto de Planejamento e Gestão de Serviços Especializados (IPGSE) é emblemático.
O documento que desmonta o discurso
O Primeiro Termo Aditivo ao Termo de Colaboração nº 101/2024-SES/GO, celebrado entre o Estado de Goiás, por meio da Secretaria de Estado da Saúde, e o IPGSE, não é especulação — é papel oficial.
📌 Valor total do aditivo:
➡️ R$ 26.138.882,29
📌 Repasse mensal:
➡️ R$ 891.098,26
📌 Vigência:
➡️ 21 de março de 2025 a 30 de agosto de 2027
📌 Unidade gerida:
➡️ Hospital Estadual de Santa Helena de Goiás Dr. Albanir Faleiros Machado (HERSO)
📌 Quem assina pelo IPGSE:
➡️ Aluísio Parmezani Pancracio, Diretor-Presidente do Instituto
Tudo isso consta de forma expressa no termo aditivo oficial .
Gestão indireta, controle difuso
O contrato deixa claro que os recursos saem do Fundo Estadual de Saúde, classificados como:
Transferências a instituições privadas sem fins lucrativos
Ou seja: dinheiro público, controle indireto, execução privada.
Na prática, isso significa que:
- o Estado repassa,
- a OS executa,
- e a cadeia de subcontratações fica diluída, longe do escrutínio direto que um contrato administrativo tradicional exigiria.
O próprio plano de trabalho do HERSO confirma que o IPGSE:
- contrata médicos,
- serviços especializados,
- exames,
- manutenção,
- sistemas,
- e prestadores terceiros — tudo sob regulamento próprio.
E é exatamente aí que o risco mora.
O elo político que não desaparece
Embora este contrato seja estadual, ele dialoga diretamente com o mesmo modelo adotado em municípios, inclusive Rio Verde, onde o IPGSE também aparece como gestor e parceiro do poder público.
Em Rio Verde, o pano de fundo político é conhecido:
- Paulo do Vale assinou contratos com OS durante seu mandato como prefeito;
- hoje ocupa cargo estratégico como Secretário de Governo, mantendo influência direta sobre a administração;
- e empresas ligadas ao seu entorno familiar figuram como prestadoras de serviços médicos em contratos associados ao modelo OS.
Nada disso é ilegal por definição.
Mas tudo isso é institucionalmente perigoso.
Quando os números explicam o problema
Um único aditivo: R$ 26,1 milhões.
Repasse mensal próximo de R$ 900 mil.
Vigência que atravessa três exercícios financeiros.
Agora multiplique esse modelo por:
- várias unidades,
- vários municípios,
- diversos aditivos,
- e múltiplas OS.
O resultado é um Estado terceirizado, onde o dinheiro público circula rápido — mas a fiscalização caminha devagar.
Transparência formal não é transparência real
O IPGSE cumpre a exigência básica:
- publica termos,
- disponibiliza PDFs,
- organiza anexos técnicos.
Mas o cidadão comum — e até órgãos de controle — precisam garimpar dezenas de páginas para responder perguntas simples:
- Quem são todos os prestadores subcontratados?
- Quanto cada empresa recebe?
- Houve concorrência real?
- Há concentração de contratos?
- Existem vínculos políticos ou familiares?
- Quem fiscaliza o fiscal?
Quando a transparência exige um curso técnico para ser compreendida, ela deixa de cumprir sua função social.
O problema não é o hospital. É o modelo
O HERSO precisa funcionar.
Os serviços são essenciais.
A população não pode ser penalizada.
Mas usar a necessidade da saúde como escudo para blindar estruturas de poder é um erro histórico que Goiás já conhece — e paga caro.
A Organização Social vira o meio.
O dinheiro público, o combustível.
E o poder político, o passageiro que nunca desce.
A engrenagem paralela: quando processos seletivos viram rotina permanente
Os registros publicados no próprio site do Instituto de Planejamento e Gestão de Serviços Especializados (IPGSE) revelam algo que vai muito além de simples recrutamento de pessoal.
Somente em 2025, a entidade tornou públicos múltiplos processos seletivos para a Policlínica Estadual da Região Sudoeste, em Quirinópolis, com volumes expressivos de vagas, inclusive em modalidade emergencial.
Os documentos mostram, entre outros:
- Edital nº 001/2025▸ 1 vaga imediata + 4 cadastro reserva
- Edital nº 002/2025▸ 94 vagas imediatas + 133 cadastro reserva
- Edital nº 003/2025▸ 2 vagas imediatas + 36 cadastro reserva
- Processo Seletivo Emergencial nº 004/2025▸ 4 vagas imediatas▸ 64 cadastro reserva (ampla concorrência)▸ 5 cadastro reserva (PCD)
Todos publicados no mesmo endereço oficial do IPGSE, todos vinculados à mesma unidade, no mesmo exercício financeiro.
Isso não é detalhe administrativo.
Isso é padrão operacional.
Emergencial até quando?
O uso de processos seletivos emergenciais pressupõe situações excepcionais, imprevisíveis e temporárias.
Mas quando o “emergencial”:
- se repete,
- se acumula,
- se fragmenta em vários editais,
- e passa a coexistir com seleções ordinárias,
ele deixa de ser exceção e passa a ser método.
E método, no setor público, exige escrutínio.
O que os editais não respondem
Os processos seletivos publicados não esclarecem de forma consolidada:
- quantos profissionais já foram contratados efetivamente;
- qual o custo mensal total dessa força de trabalho;
- quais cargos são estratégicos e quais são rotativos;
- se há concentração de vínculos ou recorrência de nomes;
- como esses contratos dialogam com os subcontratos médicos firmados paralelamente pela OS.
Em um modelo onde:
- o Estado repassa milhões,
- a OS contrata,
- subcontrata,
- seleciona,
- rescinde,
- e recontrata,
o risco não é apenas administrativo.
É estrutural.
Quando a OS vira um “Estado dentro do Estado”
Somados aos R$ 26,1 milhões do contrato do HERSO, os editais de Quirinópolis revelam o que raramente aparece nos discursos oficiais:
a Organização Social passa a concentrar poder decisório sobre pessoas, contratos e recursos humanos em escala massiva, sem o mesmo nível de controle que incide sobre a administração direta.
Isso cria uma zona cinzenta onde:
- o gestor público não contrata,
- mas também não controla diretamente,
- e o cidadão não sabe a quem cobrar.
O elo político permanece — mesmo quando não aparece no edital
Os editais são técnicos.
Os PDFs são formais.
A linguagem é neutra.
Mas o contexto não é.
O IPGSE atua:
- em unidades estaduais,
- em municípios estratégicos,
- em regiões politicamente sensíveis,
- sob gestões que mantêm continuidade de grupos e influência, mesmo com troca de cargos.
É nesse ambiente que parentescos, alianças e conveniências deixam de aparecer no papel — mas seguem operando nos bastidores.
Opinião
Quando uma Organização Social:
- movimenta dezenas de milhões,
- executa contratos de longa duração,
- promove seleções em massa,
- usa processos “emergenciais” de forma recorrente,
- e opera sob o guarda-chuva de relações políticas duradouras,
o problema não é a falta de edital.
É a falta de limite.
A saúde pública não pode funcionar como mercado permanente de vínculos temporários, blindado pela tecnicalidade dos PDFs e pela dispersão dos atos administrativos.
Transparência não é publicar dezenas de links.
Transparência é permitir que qualquer cidadão entenda quem contrata, quem recebe, quem decide e quem influencia.
E enquanto esse sistema continuar operando sem uma auditoria profunda e independente, a pergunta seguirá sem resposta:
quem, de fato, governa a saúde pública quando o poder é terceirizado — mas nunca devolvido?

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