Quando era adolescente, tinha vontade de conhecer Buenos Aires. Via a foto de mulheres elegantes trajando visons, chinchilas e roupas de grifes estreladas e de homens nas ruas andando de terno. Os prédios, magníficos monumentos, chamavam a atenção pela arquitetura soberba, lembrando os franceses. E os jardins e parques? Eu era apaixonado pelo tango clássico, em razão de tudo que ouvi quando criança, discos de Gardel, Angel Vargas, Alfredo De Angelis, Alberto Castilho, Francisco Canaro, Julio Sosa, Anibal Troilo, Juan D’Arienzo, Osvaldo Pugliese, Horácio Salgán… Mas vivia encasquetado com o tal Piazzola, que transformara meu amor num quase jazz. Não dava pra ir, dizia meu pai, é muito caro.
Recentemente, Ariel Palacios escreveu para a Revista Época 1 brilhante artigo que começa da seguinte forma: “Como poderia fracassar 1 país dotado de tal sorte?” A pergunta apareceu em maio de 1910 no editorial do jornal La Prensa, poucos dias antes da celebração do centenário da Revolução de Maio, o início do processo de independência argentina. Naquela década, o país estava no apogeu de seu prestígio: representava 50% de todo o PIB latino-americano e o o 10º PIB per capita mundial. A cidade de Buenos Aires era chamada de “a Paris da América do Sul”. Não à toa, o Dicionário Enciclopédico editado em Barcelona em 1919 encerrava o verbete “Argentina” com esta frase: “Tudo indica que a República Argentina rivalizará 1 dia com os Estados Unidos, tanto pela riqueza e extensão de seu solo como pela atividade de seus habitantes e pelo desenvolvimento e importância de sua indústria e comércio, cujo progresso não poderia ser mais visível”.
Quando foi que a Argentina capotou?
Em l930, houve 1 golpe militar que encerrou o mandato do presidente civil Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, 1 partido de centro representante da ascendente classe média e, em seu lugar, assumiu o general fascista Félix Uriburu, que fraudou diversas eleições presidenciais, implementou 1 sistema de corrupção, empreguismo, violência militar e policial, tortura e muito mais.
Juan Domingo Perón chegou ao poder em l946 e, com ele, o populismo, o personalismo com exaltação a ele e sua mulher, Evita, censura à imprensa, tortura e outras mazelas. Mandou às favas as instituições, controlou os poderes, o movimento sindical e instituiu 1 assistencialismo descabido para os padrões de riqueza argentina daquela época. Criou o “nós contra eles”, manipulou as massas e, com isso, absorveu os partidos políticos de esquerda e de direita. Foi derrubado em l955 e voltou ao poder em l973, tendo falecido pouco depois, deixando na presidência sua mulher, então vice-presidente, Isabelita Perón. Ela implantou uma série de medidas que, em apenas 6 meses, redundaram em desvalorização do peso argentino de 100%, aumento nos combustíveis de 175% e inflação de l83%. O plano ficou conhecido como “El Rodrigazo”, em homenagem ao ministro que o concebeu.
Diz Ariel Palacios que “Também foi o início em grande escala da procura dos argentinos pelo dólar, único refúgio financeiro em 1 país marcado desde o governo de Isabelita por políticas esquizofrênicas que geraram recessões, confiscos bancários, estatizações, privatizações, reestatizações, períodos de deflação, estagflação, além de hiperinflações. Desde ‘El Rodrigazo’, os argentinos foram governados por 21 presidentes, entre militares e civis. De lá para cá, passaram pela pasta da Economia 36 ministros, enquanto o Banco Central teve 36 presidentes”.
O início da última ditadura argentina, com o golpe de l976, liderado pelo general Jorge Rafael Videla, acarretou a perda do maior capital humano da sua história: médicos, cientistas, engenheiros, artistas, empresários, professores foram alvo de uma repressão brutal e repugnante. 30 mil civis foram assassinados e 300 mil fugiram para o exterior. À bancarrota do capital humano se seguiu 1 fiasco econômico inexpugnável. A pobreza disparou de 5 para 28% da população.
Conheci a Argentina nos anos 1990; era uma economia dolarizada, caríssima. Nenhum show de tango saía por menos de l00 dólares, mesmo preço da Broadway, em valores da época. De lá pra cá, vou sempre. Se transformou na nação mais próxima de nós com 1 turismo interessantíssimo, onde se pode ir por 1 preço menor que o praticado internamente no Brasil. Na semana da última eleição presidencial, fui com minha família.
Durante esses anos todos, vi o país do Teatro Colón, o com melhor acústica do universo para ópera (nele assisti “Turandot”, de Giacomo Puccini), perder totalmente sua substância. Os grandes hotéis e restaurantes entraram em decadência; Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, Macedonio Fernández, José Ingenieros e tantos outros escritores inolvidáveis, se pudessem voltar, não o reconheceriam mais.
A pátria dos esportistas de polo, tênis, automobilismo, basquete, boxe, rúgbi, golfe, pádel, hóquei sobre grama e sobre patins, acabou.
Embora o analfabetismo tenha aumentado sensivelmente, e se veja pelas ruas pedintes, como no seu vizinho da fronteira norte, busquei saber porque Macri falhara. Muitas foram as respostas, as mais importantes: havia uma trava cambial que Cristina Kirchner criara para conter a saída de dólares. Macri a suprimiu e nos momentos de crise a moeda americana foi embora; para conter o desastre, torrou 30 bilhões de dólares de reservas cambiais e descapitalizou o Banco Central. O presidente também teve de lidar com uma distorção de preços relativos gerada pela política de subsídios aplicada pelos governos Kirchner no transporte público de passageiros, no preço de combustíveis, de gás e eletricidade. Mexeu de forma destrambelhada. Resultado: inflação dobrada em relação a Cristina, descontrole de preços, pobreza crescente de 30 para 35,4% da população e subemprego altíssimo.
Não conferi o resultado de Buenos Aires, mas me pareceu que Macri ganharia. Um taxista me disse que a opção era terrível: votaria num gatuno, como se referia a Alberto Fernández, ou num burro, alcunha de Macri. Votou no burro.
O paulistano Alfredo Le Pera, foi 1 dos maiores letristas de tango de todos os tempos, compôs com Carlos Gardel dezenas deles, verdadeiros clássicos, como Cuesta abajo, El dia que me quieras, Mi Buenos Aires querido, Volver, Soledad. Por una cabeza se tornou internacionalmente mais conhecida em razão do filme “perfume de mulher”, em que Al Pacino baila com Gabrielle Anwar tendo essa canção como mote.
A música mostra 1 renitente apostador de corridas de cavalo que jura abandonar o vício, mas quando chega o domingo vai de novo jogar; assim como promete abandonar uma mulher, o que não consegue porque basta cair nos braços dela para fraquejar. Creio que estamos por uma cabeza para mergulhar no dramalhão do tango. Quem sabe, no próximo pleito presidencial não esteja o Brasil com a dúvida do taxista argentino, votar entre morrer ou morrer. Deus nos livre do inferno que se avizinha.
Demóstenes Torres
Demóstenes Torres, 58 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.
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