sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

O Cartel Invisível da Gestão de Frotas

Como PRIME, FitCard, LINK, NEO e congêneres transformaram o desconto em um mecanismo permanente de captura do dinheiro público



Durante anos, o modelo de gerenciamento de frotas foi vendido ao Poder Público como sinônimo de modernidade, controle e economia. Cartões eletrônicos, rastreabilidade, sistemas de cotações e auditorias digitais passaram a substituir as antigas licitações diretas para compra de combustível e manutenção de veículos.


No papel, o sistema parecia perfeito.

Na prática, tornou-se um dos arranjos mais sofisticados de intermediação financeira do setor público brasileiro.


Empresas como PRIME, FitCard, LINK, NEO e congêneres passaram a dominar o mercado nacional, vencendo licitações em sequência, muitas vezes com taxas negativas agressivas, prometendo descontos que encantavam gestores e departamentos jurídicos.


Mas por trás da promessa de economia, formou-se uma engrenagem invisível — silenciosa, lucrativa e altamente danosa ao erário.

A arquitetura da intermediação

O gerenciamento de frota não é um contrato simples. Ele se estrutura, necessariamente, sobre múltiplas relações contratuais:

  1. o contrato público firmado entre o ente estatal e a gerenciadora;
  2. os contratos privados de credenciamento de postos, oficinas e fornecedores de peças;
  3. o sistema eletrônico de cotações e autorizações de compra.

É justamente nessa triangulação que o modelo deixa de ser um instrumento de eficiência e passa a funcionar como um mecanismo de transferência indireta de custos.

O mito da taxa negativa

Nos últimos anos, as licitações passaram a ser disputadas quase exclusivamente pela menor taxa administrativa, muitas vezes negativa.

A lógica vendida ao gestor público é simples: quanto maior o desconto ofertado pela gerenciadora, maior a economia ao Estado.

Essa lógica, contudo, não se sustenta economicamente.

Nenhuma empresa absorve descontos de 5%, 7% ou até 10% sobre volumes milionários sem compensação. E é exatamente aqui que nasce o fenômeno que o próprio mercado passou a chamar de efeito rebote.

O efeito rebote: quando o desconto volta contra o erário

A gerenciadora não absorve o desconto licitado. Ela o transfere integralmente aos credenciados, por meio de:

  • taxas de credenciamento;
  • percentuais sobre cada transação;
  • regras contratuais assimétricas impostas unilateralmente.

Combustível

Os postos, sem margem para operar no prejuízo, repassam esse custo ao preço do litro.

O desconto desaparece na bomba. O Estado paga mais caro e sequer percebe.

Peças e manutenção: o núcleo mais grave do sistema

Aqui o modelo atinge seu ponto mais sensível.

Têm sido observados descontos licitados de até 50% sobre peças ditas “genuínas”, cujos valores de referência já estão inflados, muitas vezes até 100% acima do preço médio de mercado.

Na execução do contrato, o que chega aos veículos públicos são peças paralelas, de qualidade inferior e custo irrisório.

É a única forma de o fornecedor sobreviver.

O desconto vira ficção contábil.

A economia vira fraude sistêmica.

Quando o credenciamento começa a ruir: sinais do Espírito Santo

Esse modelo começa a apresentar fissuras. Informações de bastidores indicam que, em Estados como o Espírito Santo, postos têm resistido ou se recusado ao credenciamento diante de práticas como:

  • oferta de desconto de 5% ao Poder Público;
  • seguida da exigência de desconto de 6% do posto, sob o argumento de que a gerenciadora “precisa ganhar 1%”.

Ou seja: o desconto não existe. Ele apenas troca de bolso — e retorna maior.

Quando os postos dizem não, o sistema entra em colapso operacional. Sem credenciados suficientes, a execução do contrato se torna inviável, expondo que o modelo não se sustenta sem abuso econômico.


O precedente ignorado: Operação Peça-Chave

Nada disso é novo. A Operação Peça-Chave, no Paraná, já havia revelado exatamente esse arranjo:

descontos artificiais, manipulação de preços de referência, fornecimento de peças incompatíveis e retorno financeiro indireto via credenciamento.


O contrato foi rescindido.

Os donos da empresa JMK foram presos.


O modelo, porém, não morreu.

Ele evoluiu.

O “estepe” do cartel: por que ele nunca sai do mercado

Aqui está o ponto central da investigação.


PRIME, FitCard, LINK, NEO e congêneres não atuam como empresas isoladas, mas como um ecossistema. Quando uma marca se desgasta:

  • outra assume o contrato;
  • quando uma é questionada;
  • outra surge como alternativa “limpa”.

É o estepe do sistema.

Mesmos operadores.

Mesmos métodos.

Novas fachadas.

Assim, mesmo quando expostas administrativa, cível ou criminalmente, essas empresas não deixam o mercado. Apenas trocam de posição dentro da engrenagem.

A economia que nunca existiu

O gerenciamento de frota é legal.

O que se tornou ilegal foi a forma como ele passou a ser explorado.

O desconto prometido não existe.

A economia é fictícia.

O custo real sempre retorna ao erário — inflado, disfarçado e pulverizado.

E enquanto o debate público se limita à taxa do contrato principal, o cartel segue operando, silencioso, protegido por contratos privados, sistemas opacos e um mercado capturado.

O problema não é a tecnologia.

É quem a controla — e para quê.



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