Durante anos, o modelo de gerenciamento de frotas foi vendido ao Poder Público como sinônimo de modernidade, controle e economia. Cartões eletrônicos, rastreabilidade, sistemas de cotações e auditorias digitais passaram a substituir as antigas licitações diretas para compra de combustível e manutenção de veículos.
No papel, o sistema parecia perfeito.
Na prática, tornou-se um dos arranjos mais sofisticados de intermediação financeira do setor público brasileiro.
Empresas como PRIME, FitCard, LINK, NEO e congêneres passaram a dominar o mercado nacional, vencendo licitações em sequência, muitas vezes com taxas negativas agressivas, prometendo descontos que encantavam gestores e departamentos jurídicos.
Mas por trás da promessa de economia, formou-se uma engrenagem invisível — silenciosa, lucrativa e altamente danosa ao erário.
A arquitetura da intermediação
O gerenciamento de frota não é um contrato simples. Ele se estrutura, necessariamente, sobre múltiplas relações contratuais:
- o contrato público firmado entre o ente estatal e a gerenciadora;
- os contratos privados de credenciamento de postos, oficinas e fornecedores de peças;
- o sistema eletrônico de cotações e autorizações de compra.
É justamente nessa triangulação que o modelo deixa de ser um instrumento de eficiência e passa a funcionar como um mecanismo de transferência indireta de custos.
O mito da taxa negativa
Nos últimos anos, as licitações passaram a ser disputadas quase exclusivamente pela menor taxa administrativa, muitas vezes negativa.
A lógica vendida ao gestor público é simples: quanto maior o desconto ofertado pela gerenciadora, maior a economia ao Estado.
Essa lógica, contudo, não se sustenta economicamente.
Nenhuma empresa absorve descontos de 5%, 7% ou até 10% sobre volumes milionários sem compensação. E é exatamente aqui que nasce o fenômeno que o próprio mercado passou a chamar de efeito rebote.
O efeito rebote: quando o desconto volta contra o erário
A gerenciadora não absorve o desconto licitado. Ela o transfere integralmente aos credenciados, por meio de:
- taxas de credenciamento;
- percentuais sobre cada transação;
- regras contratuais assimétricas impostas unilateralmente.
Combustível
Os postos, sem margem para operar no prejuízo, repassam esse custo ao preço do litro.
O desconto desaparece na bomba. O Estado paga mais caro e sequer percebe.
Peças e manutenção: o núcleo mais grave do sistema
Aqui o modelo atinge seu ponto mais sensível.
Têm sido observados descontos licitados de até 50% sobre peças ditas “genuínas”, cujos valores de referência já estão inflados, muitas vezes até 100% acima do preço médio de mercado.
Na execução do contrato, o que chega aos veículos públicos são peças paralelas, de qualidade inferior e custo irrisório.
É a única forma de o fornecedor sobreviver.
O desconto vira ficção contábil.
A economia vira fraude sistêmica.
Quando o credenciamento começa a ruir: sinais do Espírito Santo
Esse modelo começa a apresentar fissuras. Informações de bastidores indicam que, em Estados como o Espírito Santo, postos têm resistido ou se recusado ao credenciamento diante de práticas como:
- oferta de desconto de 5% ao Poder Público;
- seguida da exigência de desconto de 6% do posto, sob o argumento de que a gerenciadora “precisa ganhar 1%”.
Ou seja: o desconto não existe. Ele apenas troca de bolso — e retorna maior.
Quando os postos dizem não, o sistema entra em colapso operacional. Sem credenciados suficientes, a execução do contrato se torna inviável, expondo que o modelo não se sustenta sem abuso econômico.
O precedente ignorado: Operação Peça-Chave
Nada disso é novo. A Operação Peça-Chave, no Paraná, já havia revelado exatamente esse arranjo:
descontos artificiais, manipulação de preços de referência, fornecimento de peças incompatíveis e retorno financeiro indireto via credenciamento.
O contrato foi rescindido.
Os donos da empresa JMK foram presos.
O modelo, porém, não morreu.
Ele evoluiu.
O “estepe” do cartel: por que ele nunca sai do mercado
Aqui está o ponto central da investigação.
PRIME, FitCard, LINK, NEO e congêneres não atuam como empresas isoladas, mas como um ecossistema. Quando uma marca se desgasta:
- outra assume o contrato;
- quando uma é questionada;
- outra surge como alternativa “limpa”.
É o estepe do sistema.
Mesmos operadores.
Mesmos métodos.
Novas fachadas.
Assim, mesmo quando expostas administrativa, cível ou criminalmente, essas empresas não deixam o mercado. Apenas trocam de posição dentro da engrenagem.
A economia que nunca existiu
O gerenciamento de frota é legal.
O que se tornou ilegal foi a forma como ele passou a ser explorado.
O desconto prometido não existe.
A economia é fictícia.
O custo real sempre retorna ao erário — inflado, disfarçado e pulverizado.
E enquanto o debate público se limita à taxa do contrato principal, o cartel segue operando, silencioso, protegido por contratos privados, sistemas opacos e um mercado capturado.
O problema não é a tecnologia.
É quem a controla — e para quê.

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