Mário Fernandes nunca explicou bem os motivos que o levaram a rejeitar a camisa amarela. Na época, a seleção era comandada por Mano Menezes, que já havia convocado o lateral para o primeiro jogo contra a Argentina, mas não o colocou em campo. Apesar de ter treinado como titular, Mário acabou sendo reserva de Danilo, hoje dono da posição sob o comando de Tite. Segundo familiares, ele teria se revoltado com a indiferença da comissão técnica e não se sentiu à vontade no ambiente da seleção. “O Mário seguiu os princípios dele, não vendeu a alma para jogar pelo Brasil. O motivo da ausência na seleção não era balada. Ele não foi a um puteiro na noite anterior, apenas saiu com a namorada para se divertir. Sua decisão já estava tomada”, afirmou o pai, Mário Pérsio Fernandes, o Bagué, à revista Placar, rebatendo os rumores de que o filho tinha perdido o voo para se apresentar à seleção depois da ida ao Be Happy.
Passada a recusa, Mário Fernandes retomou o foco no Grêmio e foi escolhido o melhor lateral-direito do Campeonato Brasileiro de 2011. No ano seguinte, se transferiu para o CSKA Moscou, da Rússia, onde ganhou seis títulos nacionais e disputou a Champions League. No entanto, só voltou a ser lembrado na seleção em 2014. O Brasil acabara de perder a Copa em casa e passava novamente ao comando de Dunga, que, sob a justificativa de que “todo mundo merece uma segunda chance”, decidiu dar nova oportunidade ao “desertor”. A reação ao nome de Mário Fernandes na lista, porém, gerou críticas ao treinador por parte de torcedores brasileiros que consideravam o lateral um traidor após ter desprezado o chamado de Mano Menezes três anos antes. Disputou apenas um jogo pela seleção, substituindo Danilo no segundo da goleada de 4 a 0 sobre o Japão. A “segunda chance” ficou nisso.
Enquanto a seleção de Dunga não engrenava, Mário Fernandes tomou mais uma decisão drástica: queria ser russo. Deu entrada no requerimento de cidadania em 2016. Meses depois, o próprio presidente Vladimir Putin, torcedor do CSKA, assinou o decreto de naturalização do brasileiro. Como não havia disputado jogos em torneios oficiais pelo Brasil, ele poderia defender a Rússia, o que viria a acontecer já em 2017. De pele branca, cabelo loiro e pernas compridas, quem o vê em campo com a camisa do país europeu nem desconfia que o lateral nasceu em terras tão distantes do solo soviético. Desde que não precise se comunicar. Mário consegue pronunciar poucas palavras no idioma local. Nas raras vezes em que concede entrevistas, acompanhado de um tradutor, expressa-se em tímido português.
Já ouviu broncas, sobretudo do técnico Stanislav Cherchesov, que chegou a compará-lo a um cachorro (“entende tudo, mas não fala nada”), pela falta de domínio da língua. “Se não aprendeu a falar russo até agora, não vai aprender em um mês”, afirmou o treinador no início da preparação da Rússia para a Copa. Desde o início do ano, Mário tem praticado em casa para pelo menos cantar o hino do país antes dos jogos. Representantes do jogador brincam que ele já sabe mais trechos do hino russo que do brasileiro.
Antes de ver seu nome entre os 23 convocados de Cherchesov para o Mundial, o lateral teve de superar uma fratura no nariz, que o tirou da Copa das Confederações, e uma lesão na coxa que o impediu de disputar o amistoso diante do Brasil, em março. Só tem seis partidas oficiais pela Rússia, que não celebra uma vitória há mais de oito meses. Ainda assim, Mário está confiante para disputar sua primeira Copa com o país onde se sente acolhido. “Fui recebido com muito carinho aqui”, disse o lateral na última segunda-feira. “Estou feliz e nem penso mais em seleção brasileira, que está bem servida de jogadores. Sempre quis ter passaporte russo. Não me arrependo de nada.”
Queria ser zagueiro, mas não tomava café da manhã
Mário Fernandes nasceu em São Caetano do Sul, região metropolitana de São Paulo, em 1990 – a Rússia ainda era União Soviética. Começou no futsal e esbanjava habilidade acima da média jogando no ataque. Ao contrário da maioria dos meninos de sua idade, não sonhava ser jogador profissional nem se interessava pelo campo. Mas não teve escolha no momento em que o presidente do São Caetano, Nairo Ferreira de Souza, impressionado com seu talento, lhe ofereceu um contrato no clube. Não sabia em que posição jogar. Pelo tamanho (1,90 metro), foi mandado para a zaga. “Ele atuava na defesa, mas era capaz de driblar meio time adversário e marcar gols. Tem uma técnica fora de série para um zagueiro”, conta Dino Camargo, gerente de futebol do São Caetano e um dos primeiros técnicos de Mário no clube.
Apesar do potencial, o garoto parecia um estranho no ninho em meio aos colegas de time. Introspectivo desde criança, acumulou problemas por causa de seu comportamento desleixado. Foi punido pela diretoria do São Caetano por ter faltado a um treinamento. Ao passar uma semana fazendo apenas trabalhos físicos, ele ameaçou abandonar o clube. Camargo o convenceu a permanecer. Depois de se destacar na Copa São Paulo de Juniores em 2009, foi vendido ao Grêmio por um milhão de reais. Logo em sua primeira semana nas categorias de base do tricolor, Mário simplesmente desapareceu. O caso foi dado como sequestro até ele ressurgir imundo e faminto cinco dias depois, em Jundiaí, interior paulista, na casa de um tio. Estava deprimido e desiludido com o futebol. Por causa do episódio, brigou com o pai e só voltou a falar com ele após dois meses, quando finalmente resolveu retornar ao Grêmio. Em Porto Alegre, ganhou fama de fujão, que ficou em segundo plano à medida que a torcida se encantava com suas atuações.
“Para o Mário, jogar uma pelada ou uma partida de Copa do Mundo é a mesma coisa. Ele trata a bola com muita facilidade”
Já consolidado como titular da lateral direita gremista, Mário tentou regressar à zaga, sua posição de origem. Porém, todos os técnicos com os quais trabalhou na equipe gaúcha negaram-lhe a possibilidade. Silas, por exemplo, argumentava que ele não poderia ser zagueiro por “não tomar café da manhã e ficar fraco para treinar”. É que Mário tinha dificuldade de se alimentar nas primeiras horas do dia, ou, em suas palavras, “de acordar cedo mesmo”. Um pecado para um atleta profissional. Também era cobrado pelos excessos fora do campo. Já na Rússia, admitiu que chegou a treinar de ressaca algumas vezes, mas diz ter tomado juízo na vida após se tornar evangélico.
O sonho do pai era vê-lo jogar como meia-atacante. Quem acompanhou de perto seu surgimento, assegura que não lhe falta qualidade e frieza para voos maiores. “Craques são assim, meio dispersos”, diz Dino Camargo. “Para o Mário, jogar uma pelada ou uma partida de Copa do Mundo é a mesma coisa. Ele trata a bola com muita facilidade.” Coube a Jô, seu irmão mais novo, realizar o desejo do pai ao vingar como centroavante. Após passagens problemáticas pela base de Corinthians e Grêmio, ele se consagrou artilheiro no São Caetano, mas encerrou a carreira no início deste ano por causa de seguidas lesões no joelho.
A família Fernandes ainda vive em São Caetano do Sul. Pela primeira vez na história, um jogador revelado pelo time da cidade vai disputar uma Copa do Mundo. Para Camargo, o coração dos torcedores azulinos deve se dividir entre a seleção brasileira e o prodígio de dupla nacionalidade que a rejeitou. “A gente queria ver o Mário com a camisa amarela, mas respeitamos muito a escolha que ele fez. O jeito agora é torcer por uma final entre Brasil e Rússia.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário