Stand on Zanzibar, de John Brunner, é um estranho romance de ficção científica New Wave publicado pela primeira vez em 1969, e vencedor do Prêmio Hugo de Melhor Romance. É considerado uma raridade na ficção científica, pois conseguiu fazer previsões muito precisas sobre o futuro. A estória acontece em 2010, e se fizermos uma comparação ponto a ponto com nossa realidade fica evidente a incomum habilidade de John Brunner em antecipar o futuro. De forma surpreendente, sua visão do ano 2010 inclui um líder popular chamado Presidente Obomi! O autor usa uma forma de escrita muito incomum, chamada de Innis Mode, inspirada em Harold Innis, que sacrifica a perspectiva que a prosa proporcionaria em troca de uma necessidade mais urgente de visão pessoal e dinâmica.
Veja algumas das previsões de John Brunner que se concretizaram:
Atos de violência em escolas, cometidos por indivíduos aparentemente normais, são frequentes na sociedade de Stand on Zanzibar;
O terrorismo é uma grande fonte de violência e instabilidade, que ameaça fortemente os interesses dos EUA, sendo que os terroristas são capazes de realizar ataques à prédios dentro do território americano;
Os preços aumentaram cerca de 7 vezes entre 1960 e 2010 devido à inflação, John Brunner previu 6 vezes, portanto ele chegou perto;
O rival mais poderoso dos EUA não é mais a URSS, mas a China. Entretanto, muita da competição entre EUA e China agora acontece apenas no campo econômico, comercial e tecnológico e não no campo militar;
A Europa formou um união dos países europeus para aumentar sua força econômica e influenciar os assuntos globais. A Inglaterra segue como aliada dos EUA, mas os outros países da Europa frequentemente são contrários às iniciativas americanas;
A África ainda está muito atrasada em relação ao desenvolvimento econômico global;
Israel permanece como o epicentro das tensões no Oriente Médio;
Apesar do casamento ainda existir, a nova geração agora prefere relações de curto prazo;
O estilo de vida homossexual e bissexual agora é comum;
Fármacos que melhoram o desempenho sexual são amplamente utilizados, com comerciais na mídia;
Muitas décadas de ações afirmativas conduziram negros a posições de poder, mas as tensões raciais ainda existem na sociedade. (as empresas são obrigadas pelo Ato de Igualdade de Oportunidade a contratar o mesmo número de afro descendentes e de brancos mais ou menos 5%);
O uso de veículos movidos a motores elétricos está crescendo. A Honda (que na época de Brunner era conhecida apenas como fabricante de motocicletas) é a maior fornecedora de carros elétricos, fazendo forte concorrência com a GM;
Detroit não prosperou, e agora é quase uma cidade fantasma devido às fábricas de automóveis que faliram;
Um novo estilo de música — que lembra o movimento tecno de Detroit que vimos nos anos 90 — está florescendo na cidade;
Os canais de TV agora são globalmente transmitidos via satélite;
Sistemas On-demand e de streaming como TiVo ou Netflix permitem às pessoas assistirem o que desejam de acordo com sua necessidade e disponibilidade de horário;
Aviões disponibilizam sistemas de entretenimento à bordo, com vídeos e canais de notícias disponíveis diretamente em telas na frente de cada assento;
Pessoas utilizam avatares para representarem-se em telas de vídeo — Brunner chama esses avatares, que podem ter a aparência que você desejar de “Senhor ou Senhora Em Toda a Parte”
Documentos gerados em computadores são impressos em impressoras laser;
Políticas sociais marginalizaram o uso do tabaco, mas a maconha foi descriminalizada;
É verdade que outros autores fizeram previsões do futuro que acabaram acontecendo, como Julio Verne, por exemplo. Mas mesmo assim esse nível de antecipação do futuro é muito incomum e curioso.
Todos os personagens do livro estão em missão para aperfeiçoar a raça humana, de maneiras familiares para nós hoje em dia: algumas vezes eles manifestam preocupação com a legislação e políticas nacionais e globais, outras vezes em investir e desenvolver regiões empobrecidas, ou em desenvolver programas de computador para aumentar a qualidade de vida, ou até mesmo manipulação psicológica. Mas a forma mais popular de aperfeiçoamento humano — tanto na ficção de Brunner como na nossa realidade — é a manipulação do nosso DNA.
Na ficção de Brunner um proeminente professor chamado Sugaiguntung está trabalhando em um projeto para criar super humanos manipulando o DNA de orangotangos. Ele foi até menos ambicioso que os cientistas atuais: um professor de Harvard, por exemplo, propôs implantar o DNA de humanos pré-históricos em um embrião, para que uma mulher pudesse gerar um bebê Neanderthal (quem está sendo mais ousado?).
A grande dificuldade para o leitor é compreender a escrita fragmentada de Brunner, no que ele descreve como escrita Innis Mode. Tal escrita fragmentada foi utilizada também por John Dos Passos, em USA Trilogy. Assim como Dos Passos, Brunner insere manchetes, pedaços de histórias, canções, interlúdios auto contidos, e mais badulaques culturais em sua narrativa. Brunner joga essa informação toda de forma extravagante, principalmente nas páginas finais, quando a escrita parece um completo disparate e acaba surpreendendo pela elegância com que todas as partes acabam unindo-se.
Entre tantas coisas para se admirar nesse livro pouco convencional, talvez a mais impressionante seja a capacidade do autor de manter o controle e o senso de direção até mesmo quando a narrativa parece caótica e anárquica. Colocando em outras palavras, o que parece um romance de espírito livre dos anos 60, com muita atitude mas curto em clareza, revela ter muito em comum com romances modernos do novo milênio como Cloud Atlas, A Visit from the Goon Squad, ou Gods Without Men, em que todas linhas de estória convergem, com ricos sub-roteiros encaixando-se em um brilhante e inesperado mosaico.
Duas linhas divergentes dominam o romance. Normam House é um Africano-Americano que faz parte da diretoria da GT, uma compania multinacional que lembra a General Eletric. Para avançar em sua carreira ele inicia um ambicioso projeto na África que promete ser muito lucrativo ao mesmo tempo que melhorará a qualidade de vida dos cidadãos de uma nação desesperadamente pobre do terceiro mundo. Ao mesmo tempo, o seu companheiro Donald Hogan embarca em um projeto ainda mais ambicioso — que o obrigará a operar como um espião em um país asiático hostil, parecido com a Indonésia, onde incríveis avanços em pesquisa genética vem sendo anunciados.
Essas duas linhas de estória irão acabar encontrando-se, mas Brunner leva bastante tempo para isso com seu enorme livro, e muito do apelo de Stand on Zanzibar vem dos sub roteiros e personagens menores.
Um autor boêmio chamado Chad C. Mulligan provê tanto instrospecção quanto alívio cômico em doses iguais, e é uma figura tão persuasiva que mereceria estrelar o seu próprio romance. Guinivere Steel, a líder de uma cadeia de lojas, é outra personagem que merece destaque: sua especialidade é realizar festas extravagantes em que o entretenimento consiste em humilhar os seus convidados, especialmente aqueles que ela não deseja mais convidar para as próximas festas. E, honrando a tradição da ficção New Wave da época, Brunner inclui um personagem artificial, o computador Shalmaneser, que é para a corporação GT o que o computador especializado em xadrez Deep Blue é para a IBM.
Enquanto outros jovens autores do movimento New Wave acabaram desapontando e acabaram caindo no esquecimento, com seus trabalhos entrando em becos sem saída estilísticos nos anos 80 e 90, Brunner, mais velho que os outros autores desse movimento, conseguiu entregar um romance realmente notável — fora do convencional e ousado — permanecendo ainda hoje como um livro interessante que merece ser lido além da curiosa quantidade de predições que se realizaram.
Infelizmente os leitores brasileiros podem lamentar-se, pois ele nunca foi publicado em português, e a leitura em inglês é difícil até mesmo para quem domina a língua, e para quem não domina (como este que vos escreve) é puro masoquismo literário
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