O juiz Crispim me Assombra, por Demóstenes Torres
Colunista se despede do Poder360
Em 1964, público ainda não sabia que lutas de Telecatch eram simuladasReprodução
Mudei-me, com minha família, de Anicuns para Goiânia em 1964, com 3 anos de idade. Televisão era coisa rara, para uma classe média mais abastada, algo ainda mais escasso na capital de Goiás àquela época. Assistíamos TV na casa do então tenente Estevão. No ano seguinte, meu pai comprou uma Telefunken, que vinha num mobiliário belíssimo, todo trabalhado, algo digno de um design que não se encontra mais.
Aí, fomos nós que passamos a receber nossos vizinhos. A casa ficava cheia. O aparelho tinha um fio que era ligado numa antena externa que, em geral, ficava em cima da casa ou de um pau bem alto, ao lado dela. De vez em quando, sua imagem ficava embaçada, chamuscada ou saía do ar. Nesse momento, alguém trepava (sic) na casa ou no pau e punha na antena um pedaço de Bombril, fazendo com que, magicamente, as coisas se regularizassem.
Em 1968 –recordo-me porque foi o ano em que entrei na escola–, o maior sucesso da TV era o “Telecatch Montilla”. Nesse programa de luta livre, o mocinho, Ted Boy Marino, sempre vencia no final, mas sofria muito com os vilões, principalmente Rasputin Barba Ruiva.
Rasputin me fazia sofrer; valia-se de golpes baixos, espremia limão no olho do adversário, usava soco inglês e o sangrava, e outras baixarias. Para delírio da plateia, ao fim, Ted Boy Marino, um galã italiano que falava enrolado, lhe aplicava tesouras voadoras e saltava com os dois pés no peito do malvado. Essa trupe, que fazia exibições Brasil afora, esteve em Goiânia, no ginásio Andrelino de Moraes, da Universidade Católica de Goiás (hoje Pontifícia Universidade Católica). Fui com meu pai assistir.
O árbitro principal dos combates se chamava Crispim, uma figura magra que fingia não ver os golpes baixos aplicados por Barba Ruiva em Ted Boy. Lá pelas tantas, meu pai, indignado, invadiu o ringue e aplicou umas bolachas no juiz. Foi necessária a atuação dos seguranças para pacificar o intruso, que era incentivado pela plateia –na verdade, o público também queria dar bordoadas no árbitro. Só muito tempo depois descobrimos que era tudo combinado; na realidade se tratava de um show, mas o público não sabia.
Escrevo pela última vez, nesta temporada, aqui no Poder360. Seu diretor e jornalista principal, Fernando Rodrigues, acolheu uma sugestão de um grande amigo, Mário Rosa, e convidou-me há um ano e meio para publicar semanalmente uma coluna. O Poder360, de lá para cá, acabou se tornando num dos mais influentes periódicos do Brasil.
Numa aula que tive recentemente, a professora contava sobre o heroísmo de um determinado movimento para conseguir aprovação da Lei de Acesso à Informação, a chamada LAI. Então, a lembrei que a história é muitas vezes prosaica, e, naquele episódio, o foi especialmente. O projeto da LAI havia sido aprovado há muito tempo na Câmara dos Deputados e estava engavetado no Senado. Fernando Rodrigues me procurou –eu era o presidente da Comissão de Constituição e Justiça –, alertando para a importância desse diploma normativo.
Avoquei a relatoria e, em tempo recorde, fizemos a aprovação na CCJ e, posteriormente, no Plenário. Sabia eu que havia oposição importante. Houve argumentos contrários e sólidos de alguns senadores, como o ex-Presidente da República Fernando Collor de Mello, entendendo que alguns prazos eram bastante exíguos e havia artigos que escancaravam demais o passado do Brasil.
Mas nós conseguimos aprová-la, alegando que ajustes realmente eram necessários, mas poderiam ser feitos em outra oportunidade, pois o país precisava imediatamente da lei. É óbvio que tais reparos jamais ocorreram: o texto continua sendo o mesmo aprovado pelo Senado. E por provocação de Fernando Rodrigues, não de qualquer movimento.
Escrever o artigo semanal é tarefa muito difícil; exige muita pesquisa, revisão, apuração de fatos e conhecimento que um leigo não detém. Tive de reler Shakespeare, Ibsen, Chalámov, entre outros. Para a redação de temas jurídicos, num país prolífico em alteração legislativa, exige-se uma atualização constante.
Muitas vezes, discordo de uma decisão do Supremo ou do STJ e tenho que explicar ao leitor as razões. Também preciso transformar a linguagem jurídica em linguagem popular, porque eu venho do Direito e, até bem pouco tempo, estava no Ministério Público escrevendo sobre matéria penal.
Agora, depois do sufoco semanal, até compreendo porque os analistas políticos brasileiros, que publicam textos diariamente, em sua maioria são tão ruins. Eles, na realidade, têm de encher linguiça e acabam fazendo análises pueris, com as exceções honrosas de sempre.
A pessoa tem que viver exclusivamente daquilo que se propõe a fazer. Não é diferente com jornalistas. Vários, além da escrita, fazem “bico” na televisão e no rádio, fora as palestras. Resultado: a má qualidade prevalece nos textos e nas outras mídias. Muitos dão a impressão de que abriram o último livro nos bancos de graduação. Na área jurídica, particularmente, reinam desinformação e mediocridade.
No início deste ano, entrei para o mestrado acadêmico em direito constitucional. Cursei as matérias e preciso, agora, escrever minha dissertação, sobre a “superação da instrumentalidade das formas pelo devido processo legal”. O tema é relativamente complicado, pois é tratado como uma obviedade; a maioria escreve, no máximo, umas duas páginas a respeito. Então, uma coisa é certa: tenho muito a pesquisar. Inclusive, precisarei contratar assistentes para compilarem o material, que deve se compor essencialmente de julgados. Pretendo questionar como é que no Brasil ainda se aplica o Código Napoleônico na matéria de nulidades no processo penal, em pleno século 21.
Eu me aposentei do Ministério Público no ano passado. Pensei em fazer uma advocacia muito restrita, direcionada para o que penso, a defesa do direito às liberdades. Não perdi meu foco, mas felizmente a clientela aumentou demais, e não consigo mais fazer tantas coisas ao mesmo tempo. Pedi ao caríssimo Fernando Rodrigues um ano de prazo para que pudesse me dedicar, quase exclusivamente, à elaboração da dissertação de mestrado, e ele concordou. Estarei de volta no ano que vem, focado nesta coluna semanal.
Agradeço a todos aqueles que me leram durante toda essa jornada. Como disse Fernando, os textos geraram grande repercussão, com muita gente contra e a favor das análises apresentadas. Enfim, me foi permitido apresentar parte de minhas ideias; saio porque, caso contrário, faria aqui o papel do juiz Crispim, lá do “Telecatch”: tomar uns cascudos do velho Avelomar Torres por me distrair da escrita com afinco e estudo.
Autores
Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. Escreve sempre às quartas-feiras.
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