O controverso narrador Galvão Bueno formou uma dupla muito eficiente, até pouco tempo, com o ex-árbitro de futebol e comentarista Arnaldo Cezar Coelho. Durante as transmissões, Arnaldo explicava a todos quais eram as regras que deveriam ser obedecidas a cada jogada para que o “juiz” não interferisse no jogo e o resultado da contenda não fosse influenciado por suas parcialidade e equívocos. Antes de explicar, ele era provocado por Galvão: “pode isso, Arnaldo?”
No mundo jurídico, as regras, grosso modo, funcionam assim também. Temos duas partes: autor, aquele que deduz a sua pretensão em juízo; e, réu, o que resiste a essa pretensão. Para decidir quem tem razão, o Estado criou a maior das figuras, o juiz de Direito. Este notável senhor deve deter saber jurídico extraordinário, ter reputação ilibada, ponderação e, sobretudo, imparcialidade. Não há autor que discrepe nesse ponto, mesmo os que defendem o juiz ativo e o juiz democrático. Referido modelo da Justiça tem que ser imparcial.
Aprovado em rigorosíssimo concurso de provas e títulos, para desempenhar a contento suas funções, ao juiz são dadas garantias acima dos demais barnabés: é vitalício (só poderá perder o seu cargo via ação civil ajuizada pelo Ministério Público, após condenação criminal transitada em julgado, pela prática de determinados crimes); é inamovível (nenhum político, nem ninguém, poderá retirá-lo do lugar em que atua, exceto em casos estritamente definidos em lei, com a instauração do devido processo legal administrativo, e direito à ampla defesa, além de julgamento colegiado); e irredutibilidade de vencimentos (nem o Paulo Guedes pode abaixar o seu salário).
Ao longo da história, a imparcialidade do juiz é sempre ressaltada como o ápice de sua independência. Para o filósofo grego Sócrates, há mais de 2.000 anos, o juiz deveria possuir quatro características: “escutar com cortesia, responder sabiamente, ponderar com prudência e decidir imparcialmente”. Já sabia se tratar de uma das principais características daqueles que resolvem se dedicar à nobre missão de julgar os seus iguais.
Tomas Hobbes, em Leviatã, defendia a ideia de que “em nenhuma causa alguém pode ser aceito como árbitro, se aparentemente para ele resultar mais proveito, honra ou prazer com a vitória de uma das partes do que com a da outra”. Do mesmo modo que Sócrates, Hobbes intuía, acertadamente, que só se poderia qualificar de justa uma decisão se a autoridade incumbida do dever de decidir estivesse totalmente despojada de qualquer interesse na vitória de um dos contendores.
Em Deuteronômio 16, Moisés na planície de Moabe, antes de entrar em Canaã, a terra prometida, discursa aos israelitas, exortando-os a cumprir a lei, que mais tarde ficou conhecida como Lei Mosaica:
“Você deve designar juízes e oficiais para cada tribo em todas as cidades que Jeová, seu Deus, lhe dá, e eles devem julgar o povo com julgamento justo. Você não deve perverter a justiça, nem mostrar parcialidade (…).”Contemporaneamente, com exceção de Estados totalitários, todos os sistemas jurídicos existentes no mundo, expressa ou implicitamente, preveem a figura da imparcialidade do juiz. A Declaração Universal dos Direitos do Homem enuncia, em seu artigo X, que “todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. O Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, idem. A imparcialidade é uma evidente conquista civilizatória, que busca elidir comportamentos arbitrários.
Para não deixar dúvidas sobre o tema, sugiro a todos, inclusive jornalistas, se debruçarem sobre o belo ensaio –de linguagem acessível–, feito pela doutora em Direito Gisele Leite, intitulado Esclarecimentos sobre a imparcialidade do Juiz no Direito Processual Civil Brasileiro, publicado no Jornal Jurid, ano passado. Nele, ela faz uma explanação irretocável desse princípio, inclusive no âmbito penal, para concluir: “deve-se considerar suspeito o juiz que tiver aconselhado uma parte a respeito da causa ou aquele que estiver interessado em julgamento favorável a uma das partes”.
Não obstante a clareza do mandamento de imparcialidade e o seu status quase “natural”, parcela da sociedade brasileira flerta com o autoritarismo na ânsia de justificar o tribunal de exceção instaurado em Curitiba, flagrado recentemente por meio da divulgação das mensagens trocadas entre o juiz Sérgio Moro e membros do Ministério Público Federal. Os “liberais” brasileiros, desvencilhando-se dos princípios basilares do liberalismo, mandam às favas o império do direito e se agarram num suposto Messias. Tal como os “comunistas” que combatem, os seus fins justificam os meios, numa batalha entre o bem e o mal, em que o mal é sempre o outro. Do mesmo modo, alguns juristas, apoiados pela grande maioria da imprensa, justificam o acerto das ações do grupo, calcando-se na natureza excepcional do caso. É a “ética” da Lava Jato. E, por consequência, acabam por defender a derrogação casuística do art. 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal de 1988, onde se prescreve que não haverá juízo ou tribunal de exceção. O que interessa é a persecução pura e simples dos inimigos da nação. A justificação se move com o vento.
O caso do vazamento ilegal de mensagens ilustra bem o fato. Quando da divulgação, ao arrepio da lei, do diálogo travado entre os ex-presidentes Dilma e Lula, Moro, com olhar sobranceiro e ombros erguidos, disse ao apresentador Pedro Bial:“O problema não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, mas era o diálogo em si, uma ação visando burlar a justiça”. Por certo nutria a certeza de superioridade moral em relação aos dois. No entanto, age de forma diversa no que concerne à divulgação das mensagens que trocou com a acusação. Para ele, a publicidade dada às suas conversas, mesmo possuindo inegável interesse público, é um fato grave, dado que as mensagens são fruto de uma “invasão criminosa de celulares de procuradores”. Nem isso parece ser verdade. Por que o tal hacker faria uma usurpação parcial dos dados? Sim, ao que se sabe, a operação Lava Jato não começou em 2015 e nem terminou em 2018. Não seria mais lógico imaginar (sic) que algum dos participantes do grupo possa ter vazado os diálogos ao The Intercept Brasil?
A ambiguidade de comportamento, a revelar nítida ausência de princípios, expõe o que há de mais prejudicial ao direito nesta quadra da história. Em razão da divulgação, se fez exposto o método heterodoxo utilizado pela força-tarefa da Lava Jato, em busca de fim diverso da mera punição penal. A intenção era higienizar o Estado Brasileiro, “limpar o Congresso”. É a disfarçada utilização política do Poder Judiciário.
O jornal espanhol El País publicou um consistente artigo de Grazielle Albuquerque, Justiça e Política tornam-se perigosamente iguais, no qual conclui: “Há uma questão que se desloca do debate sobre a natureza da Justiça e talvez seja a mais importante dentro de uma análise histórica: a percepção de que a justiça é política ou, melhor dizendo, político-partidária”. Irretocável. A Lava Jato definiu as eleições, prejudicou Lula e auxiliou, às escancaras, Jair Bolsonaro. O eleitor apoiou e, em grande parte, ainda apoia a operação, na crença quase religiosa de que a Justiça poderia depurar a política, mas se sucumbe à mais cruel das desilusões frente ao seu facciosimo.
Não se pode dizer que Moro não auferiu vantagens. Saiu de um cargo relevante para ser o maioral do Executivo na área de Justiça e Segurança Pública, com a promessa de ser ministro do Supremo Tribunal Federal. E quem diz não sou eu, e sim o presidente da República:
“Fiz um compromisso com ele (Moro), porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura. Eu falei: a primeira vaga que tiver lá está à sua disposição. (…) Eu vou honrar esse compromisso com ele. (…). A primeira vaga que tiver, eu tenho esse compromisso com Moro, e, se Deus quiser, cumpriremos esse compromisso”. (Jornal O Globo on-line, em 12.jun.2019).
Os procuradores da República de Curitiba também obtiveram vantagem com a fama súbita. Para usar um padrão frequente entre eles quando da propositura de ação de improbidade administrativa, pergunta-se: em decorrência das condutas aéticas, quanto faturaram em palestras, lançamento de livros, diárias para dar entrevistas, ajudas de custo, passagens aéreas?
Não se quer dizer aqui que fulano ou sicrano sejam inocentes, ou que não haja provas da corrupção; a parcialidade não afasta as evidências, mas apenas atesta a violação de um dever tanto legal quanto moral do julgador, a macular todo o processo, que inevitavelmente será anulado.É espantoso que se discuta a legitimidade da atuação parcial de um juiz em pleno século XXI, submetendo a Constituição Federal ao populismo mais barato. É certo que as consequências advindas desse fato terão enorme repercussão na prática judiciária brasileira. Se for ignorado, crescerá a perseguição institucional a alvos predeterminados, a partir de arranjos feitos entre membros do Judiciário e do Ministério Público. Se devidamente punidos, a ordem poderá ser restabelecida. Não acredito que fato de tal gravidade será ignorado por nossas instituições.
Porém, é preciso aguardar o desdobrar dos acontecimentos. Hoje, o que se vê é a tentativa de convalidação, por meio da aprovação popular, do método da Lava Jato. Não interessam mais os cânones do Direito. Tudo isso é besteira. Moro é um juiz de Inquisição. Fosse firme em seus propósitos, não utilizaria expediente que, ao fim e ao cabo, destruiria toda a legitimidade da operação. Afinal, se o apoio popular tem o condão de legitimar o erro, transformando-o em acerto, por que não submeter os réus ao escrutínio do povo? Alguns, dos quais discordo frontalmente, defendem que, no caso do ex-presidente Lula, isso seria uma necessidade. Divorciado do Direito e casado com a opinião pública. Moro advoga para essa corrente.
Juiz vazar escuta telefônica, dar dura em procurador, chamar procuradora de despreparada, chefiar força-tarefa, recomendar que só se aproveite 30% de delações de um determinado caso: pode isso, Arnaldo?
Demóstenes Torres
Demóstenes Torres, 58 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.
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