A vacina contra a covid-19 desenvolvida pela chinesa Sinovac está sendo testada no BrasilReprodução/Instituto Butantan
O Brasil passa por um fenômeno que pode ser chamado de “judicialização da vida”. A cada dia, aumenta a certeza de que não há seara alguma que não possa ser decidida pelo Poder Judiciário, mormente pelo Supremo Tribunal Federal. E, ao menos por ora, creio que chegamos a um extremo, sobre evento futuro e incerto: há discussões acaloradas sobre a obrigatoriedade de a população ser vacinada contra a covid-19, quando esta tiver eficácia científica e for aprovada pela Anvisa.
Não há como negar que é mesmo um prato cheio. No último dia 23, o ministro Luiz Fux vaticinou:
“Podem escrever, haverá uma judicialização, que eu acho que é necessária, que é essa questão da vacinação. Não só a liberdade individual, como também os pré-requisitos para se adotar uma vacina”
O presidente ainda procurou justificar que a jurisprudência definida pela Corte representa grande segurança jurídica, acrescentando, sobre a judicialização de tudo:
“O Supremo teve que decidir Código Florestal. Quem entende de Código Florestal no Supremo? Ninguém foi formado nisso. Idade escolar, quem entende de pedagogia ali? Questões médicas”.
Em setembro, já se havia reconhecido repercussão geral no Tema 1.103. Nele, o Supremo vai decidir se, com fundamento em convicções filosóficas, morais e religiosas, pais podem deixar de vacinar seus filhos menores.
Fora esse “aperitivo”, o PTB ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.537) do artigo 3º, inciso III, da Lei 13.979, dispositivo que determina:
“Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: […] III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos”;
Durante aulas do mestrado no último sábado, debatíamos sobre o tema na disciplina Constituição e Relações Privadas. Para o professor, caso a questão chegue ao Supremo Tribunal Federal, a Corte deverá realizar um julgamento mais minimalista, isto é, dizer se a vacinação será ou não obrigatória. Não lhe cabe instituir políticas públicas a respeito, sob pena de usurpar a competência dos demais Poderes, sem se excluir, por óbvio, a análise sobre a constitucionalidade de leis e atos normativos que porventura tratem da temática, como a Ação Direta já citada.
Embora não participante da aula, Rodrigo Maia fez na 3ª feira (27.out.2020) um alerta importante. Segundo ele, Executivo e Legislativo devem resolver o tema, em vez de, como tem ocorrido frequentemente, deixar que o Supremo o faça:
“Nós não devemos deixar um espaço aberto, esse vácuo, para que mais uma vez o Supremo decida e que tanto o Executivo e o Legislativo fiquem reclamando de algum ativismo do Poder Judiciário […]. E acho que o governo e o Legislativo deveriam organizar essa questão da vacina, porque acho que é o ambiente correto. Acho que é melhor do que uma decisão encaminhada pelo Supremo Tribunal Federal, que, se nada for feito, vai acabar mais uma vez decidindo no lugar do Executivo e do Legislativo”.
Impossível não relacionar esse exercício de futurologia ao emblemático episódio da Revolta da Vacina (1904), no contexto de crise aguda das doenças de varíola, peste bubônica e febre amarela.
Uma de suas origens vem dos anos 1870, quando se iniciava um movimento de “limpeza” da então capital Rio de Janeiro, que passava por dar fim aos cortiços –essas moradias precárias foram o ambiente da narrativa de Aluísio Azevedo, no romance nada romântico “O Cortiço”, de 1890. Conforme lembra o historiador Nicolau Sevcenko, eram a alternativa de emergência diante da crise imobiliária, da miséria e da pressão policial, que resultavam em promiscuidade, insalubridade e doenças.
O engenheiro Francisco Pereira Passos foi indicado pelo presidente Rodrigues Alves para prefeito do Distrito Federal. Encantado com a ampliação do projeto urbanístico que presenciara em Paris, quis estender o fenômeno à nova república brasileira. Para tanto, precisava de total autonomia, recebida com a lei de 29 de dezembro de 1902. Em um de seus memoráveis escritos, disse o brilhante jurista Afonso Arinos de Melo Franco sobre o diploma:
“O artigo 3º declarava que, nos recessos da Câmara, o ‘prefeito administraria e governaria o distrito de acordo com as leis municipais em vigor’, isto é, com ela própria, a lei nova, que superava as posturas locais. O artigo 16, de constitucionalidade duvidosa, dispunha que as autoridades judiciárias, federais ou locais, não poderiam ‘revogar as medidas e atos administrativos, nem conceder interditos possessórios contra atos do governo municipal, exercidos ratione imperii [por razões imperativas]’.
O artigo 24 fazia tábua rasa do direito processual. Por ele consideravam-se ‘embargadas’ (sem intervenção do Poder Judiciário) as obras em curso, nas quais fosse afixado edital da prefeitura, determinando aquela providência.
[…]
O artigo 25 dispunha que o despejo dos residentes nos prédios a serem demolidos, bem como a remoção dos respectivos móveis e pertences, seriam feitos pela polícia. Completando o sistema de exceção, o artigo 26 estabelecia que os assentamentos nos livros das repartições municipais, sobre transferências de imóveis para os fins da lei, valeriam como escritura pública, independentemente da outorga uxória e da transcrição do título.”
Na “Crônica” de Olavo Bilac, essa política também foi criticada:
“No aluir das paredes, no ruir das
pedras, no esfarelar do barro, havia um
longo gemido. Era o gemido soturno e
lamentoso do Passado, do Atraso, do
opróbrio. A cidade colonial, imunda,
retrógrada, emperrada nas suas velhas
tradições, estava soluçando no soluçar
daqueles apodrecidos materiais que
desabavam. Mas o hino claro das
picaretas abafava esse protesto
impotente. Com que alegria cantavam
elas – as picaretas regeneradoras! E
como as almas dos que ali estavam
compreendiam bem o que elas diziam,
no seu clamor incessante e ritmico
celebrando a vitória da higiene, do bom
gosto e da arte!”
Outra voz contrária, Rui Barbosa alertou, em 1903:
“Digo que, com a faculdade de regular o policiamento, o trânsito, o arruamento, o embelezamento, a irrigação, os esgotos, o calçamento e a iluminação, enfeixando nas mãos de um só homem essa autoridade, ele poderá ser senhor absoluto desta capital, um ditador insuportável, poderá criar para todos os seus habitantes uma situação intolerável de opressão e de vexames”.
A “Ditadura Passos” foi acompanhada, logo mais, pela chamada “Ditadura Sanitária” atribuída a Osvaldo Cruz, nomeado por Rodrigues Alves como diretor geral de Saúde Pública. A Lei de março de 1904 lhe permitiu, segundo Sevcenko:
“[…] invadir, vistoriar, fiscalizar e demolir casas e construções. Estabelece, ainda, um foro próprio, dotado de um juiz especialmente nomeado para dirimir as questões e dobrar as resistências. Ficam vedados os recursos à justiça comum. A lei de regulamentação da vacina obrigatória, em novembro desse mesmo ano, viria a ampliar e fortalecer essas prerrogativas, colocando toda a cidade à mercê dos funcionários e policiais a serviço da Saúde Pública. Se alguém escapara dos furores demolitórios de Lauro Müller e do Prefeito Passos, não teria mais como escapulir aos poderes inquisitoriais de Osvaldo Cruz. A ameaça deu lugar ao gesto concreto e sensível da opressão. O pesadelo tornou-se realidade. Nada mais natural, portanto, que a população inerme reagisse, transformando a realidade em pesadelo.”
Na manhã de 11 de novembro, no Largo de São Francisco de Paula, a população encheu a praça e, armada com pedras, paus, ferros, instrumentos e ferramentas contundentes, desafiou as forças policiais, em confrontos que duraram 8 dias, com saldo de, no mínimo, 110 feridos, 30 mortos e 945 pessoas presas.
A revolta não impediu a campanha de vacinação, mas não chegou a ser infrutífera: foi a última vez em que o Estado forçou, fisicamente, seus cidadãos a se imunizarem contra uma doença. Obrigatoriedade não quer dizer imposição; “obrigatória” não é “compulsória”. Vide alistamento militar e participação nas eleições, deveres que podem, sim, gerar restrições aos que não cumprirem, mas nunca submeter a tratamento degradante, a pretexto de se garantir o bem comum.
Evidente que a vacina é fundamental. Mas num país onde ainda há terraplanistas, não é de se duvidar que pessoas ponham em xeque a eficácia da cura contra a covid-19 (outros nem sequer acreditam que a doença existe), mesmo após atestada. E a solução, a história já mostra que não será empurrar o antídoto goela abaixo, ou veia adentro. Não será com o Exército laçando pessoas refratárias e vacinando-as a muque que se resolverá a grave questão de saúde.
O Poder Público, não o STF (que precisa apenas declarar a obrigatoriedade de se vacinar), deverá estabelecer as sanções rigorosas para os refratários, que cada ente federado poderá estabelecer. Afinal, foi o órgão máximo do Judiciário que há pouco disse que União, Estados e municípios têm competência concorrente para estabelecer os regramentos no trato da epidemia.
Está na hora do Supremo largar o sebastianismo e, concomitantemente, deputados, senadores, governadores e prefeitos buscarem as medidas adequadas que o momento exige. Tornaram-se agentes públicos por que razão? É hora de pôr essa turma pra trabalhar.
Nem porrete, nem concentração de poder. Vacina e juízo a todos.
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Autores
Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. Escreve sempre às quartas-feiras.
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