Euler de França Belém
O radialista e comentarista Valério Luiz de Oliveira foi assassinado por um suposto pistoleiro. É muito difícil explicar porque o indivíduo deixa a barbárie escapar e comete crimes brutais
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Valério Luiz Oliveira: o comentarista tinha opiniões fortes sobre o meio esportivo e não titubeava em apresentar as falhas dos times, jogadores e dirigentes esportivos. O que explica seu assassinato brutal e sem sentido?
A morte do radialista e comentarista esportivo Valério Luiz Oliveira, de 49 anos, na quinta-feira, 5, não é uma morte comum e lembra, aqui e ali, histórias de Franz Kafka, tanto a de “O Processo” quanto a de “O Castelo”, e de Albert Camus, notadamente “O Estrangeiro”. Mesmo que se descubra o autor do crime, que suas motivações sejam apontadas e devidamente esclarecidas e o criminoso — o executor e, quem sabe, o suposto ou supostos mandantes — seja preso pela polícia, denunciado pelo Ministério Público e condenado pela Justiça, restam as perguntas: por que o homem mata? Por que “é preciso tirar” a vida de outro indivíduo para “aplacar” a fúria interior? Matar é quando o homem se torna “deus” e, por isso, avalia que pode retirar seu “inimigo” do mundo? É, mas não só. Há um pouco de insondável nas ações humanas.
Nem psiquiatras, psicólogos, antropólogos e advogados têm condições de apresentar teses precisas sobre a questão. As interpretações sobre o homem — se pretendemos escapar do esquematismo religioso ou ideológico — são sempre aproximadas. Há quem avalie que o homem que mata outro homem refaz o percurso da selva ancestral — em busca, digamos, do eu primitivo. A civilização não extingue o desejo de matar. A repressão, por intermédio de leis, é uma criação da civilização, portanto um fenômeno cultural, para possibilitar uma sociedade menos violenta, na qual os fortes não possam destruir os fracos.
Entretanto, se a lei contém parte dos homens, aqueles que temem a prisão ou o opróbio público e aceitam uma vida mais cordial e menos agressiva, não “segura” todos eles. Há sempre aqueles que escapam da “prisão” legal e transgridem a ordem. Aceitar que não se deve matar, ou cometer outros tipos de violência física, é acomodar-se à rotina da vida civilizada. A agressividade do homem civilizado é transferida para a criação — artística, tecnológica, esportiva. Não há civilização possível — não há sociedade perfeita — sem que o homem aprenda (e aceite) sublimar.
Ainda assim, o bárbaro que habita cada ser frequentemente sai — como o Sapo Barbudo às vezes escapa do ex-presidente Lula da Silva, como se fosse uma espécie de Hulk da política — daquele indivíduo que parecia “civilizado”, tranquilo e, até, emasculado. Então, o bárbaro que dormia no interior do civilizado ataca e pode até matar. Um exemplo disto é o indivíduo ciumento (ciúme é uma espécie de tortura emocional). A civilização sugere ao traído, ou supostamente traído — a traição às vezes é mais forte na imaginação do que na vida real —, que deixe o parceiro partir e fazer sua (nova) escolha. Mas eventualmente há uma espécie de comichão no cérebro do indivíduo, como se fosse uma consciência selvagem, dizendo-lhe: “Isto não pode ficar assim, seu corno! Vá lá e mate o [ex-]parceiro” (ou parceira). O homem, principalmente, sente-se desmoralizado com a traição e, para vingar-se, chega a matar a ex-mulher e seu novo parceiro. Aparentemente mais competitivo do que a mulher, o homem pensa que, ao ser “trocado”, tornou-se inferior e que a forma de voltar a ser superior, a restauração do macho, é destruindo ou eliminando aquilo que não pode mais possuir e controlar.
O fato é que a civilização, se a anestesia e se a contém parcialmente, não exclui a barbárie, que permanece ao lado, como se fosse uma consciência negativa, como se estivesse dormitando. Aquela agressividade que precisa “adormecer” — um sono “leve” em uns e “pesado” em outros — para que o homem possa criar, às vezes reaparece e o indivíduo se torna violento, surpreendendo a todos. É por isso que dizemos, estupefatos: “Mas como pode aquele editor de jornal, intelectual e pacífico, ter matado a namorada a tiros!”
Pensa-se não raro que o homem mata porque sabe que as leis são flexíveis e que não vai ficar muito tempo na cadeia. A explicação, embora plausível, não é satisfatória. Homens comuns — relutamos em escrever “normais” — matam não porque têm consciência de que ficarão presos, ou nem isso, por pouco tempo. Matam porque alguma coisa rompe dentro deles e aquele fio finíssimo que “desliga” a civilização e “liga” a barbárie entra em curto-circuito. Aí predomina o imponderável e o selvagem assume o controle, numa questão de segundos ou minutos, e mata, às vezes com uma brutalidade inaudita.
Há, porém, o crime “encomendado” — a barbárie racionalizada, orquestrada. O pistoleiro é o profissional da morte, um “deus” que usa uma arma, geralmente um revólver ou uma pistola, para eliminar indivíduos que desagradam seus pagadores. O assassino de Valério Luiz pode até não ser um profissional, mas agiu como tal, ou, como disse um delegado ao Jornal Opção, pelo menos mostrou “coragem” e “determinação”. Esperou o radialista deixar a sede da Rádio Jornal AM 820, na qual participava do programa “Jornal de Debates”, fumou um cigarro, talvez dois, “permitiu” que o jovem entrasse no automóvel, na Rua T-38, no Setor Serrinha, em Goiânia, e deu o primeiro tiro. Aparentando calma, aproximou-se do carro, que desgovernara, e deu mais cinco tiros de revólver. Não estava “brincando”. Estava decidido a matar e matou. Nas proximidades, uma menina observou a barbárie e teria sido “encarada” pelo criminoso, que vestia uma camiseta vermelha, a cor que simboliza sangue. Trata-se de um pistoleiro? É possível. Poucas pessoas sabem atirar com a mesma precisão e segurança. Quem o pagou? Acredita que sairá impune? Sabe que um crime que provoca tanta comoção é investigado com mais rigor pela polícia? O pai de Valério Luiz, o radialista e ex-deputado estadual Manoel de Oliveira, sugeriu, no calor da hora, que sabe quem matou seu filho. Talvez saiba. Talvez não saiba.
Valério Luiz era um jovem saudável e, como comentarista esportivo, extremamente polêmico — até agressivo. Apontava, com crueza, os equívocos de dirigentes esportivos, clubes e jogadores de futebol. Não merecia morrer. Ninguém merece uma morte brutal. Naturalmente comovida, daí ser tolerável o que disse — talvez não seja o que pensa de fato —, uma parente do radialista afirmou que, no lugar de matar inocentes, “deveriam matar bandidos”. Aceitar que se possa matar bandidos é o começo de uma aceitação tácita de que se pode matar. Como se sabe, começa-se matando bandidos e, em seguida, se está matando inocentes. Criminosos, como o que matou Valério Luiz, devem ser presos... e por muito tempo. No Brasil trata-se a prisão como mera “reeducação”, porque a linguagem, com o politicamente correto, se tornou populista. Mas é preciso que se entenda a prisão como exclusão daquele que não aceita as mais comezinhas regras de convívio social.
Pais que perdem filhos recuperam-se, readquirem alguma alegria — o luto é vital para que se siga adiante —, mas guardam para sempre uma espécie de tristeza no fundo d’alma. Nota-se um envelhecimento precoce, às vezes, e mesmo um alheamento do mundo. Radicalizam-se as opiniões sobre a criminalidade, outras vezes. Arrancar um filho de um pai e de uma mãe é uma brutalidade difícil de explicar com as cores do jornalismo tradicional, meramente factual, aquele que precisa, rapidamente, apontar “culpados”, apresentar horários, número de disparos, o modelo do armamento. As reportagens tendem a fixar um momento, o da morte, como o “retrato” definitivo do indivíduo. É como se um dia na vida de Valério Luiz fosse mais importante que seus 49 anos. Mas é assim que a vida funciona. A morte, ao mesmo tempo que nos assusta, nos encanta e mesmeriza. Kafka certamente nos diria que a vida, que inclui a morte — o fim físico não significa a extinção da história do indivíduo, pois a memória permanece —, é mais rica do que o jornalismo pode revelar.