quarta-feira, 8 de maio de 2019

O Supremo pode resistir a Macbeth?, pergunta Demóstenes Torres

Por Demóstenes Torres

A história e a literatura trazem incontáveis e maravilhosos exemplos da briga pelo poder – tão fictícios que parecem reais, pois o DNA e a impressão digital são únicos. Shakeaspeare sabia que a vida é igual desde as cavernas, tão igual quanto a maldade pode planificá-la.

Em Macbeth conta a história de um general escocês destemido na defesa do rei Duncan. Após batalhas vitoriosas, onde seu valor como guerreiro é bastante exaltado, encontra-se com 3 bruxas em um pântano que preveem que ele será consagrado barão de Cawdor e, posteriormente, rei. No entanto, anunciam que seus filhos não serão reis e sim os filhos de Banquo, outro general de igual valor, que também participou dos embates e que se encontrava com ele naquele momento.

A partir daí confirma-se o título previsto pelas bruxas, Lady Macbeth o convence a assassinar o rei enquanto este dormia. Macbeth se torna tirano e dá um banho de sangue na corte, até ser decapitado.


Nada mais atual que as vilanias ditas por Lady Macbeth: “compõe-te de acordo com o momento; ostenta boas vindas em teu olhar, em tua mão, em tua língua. Com a aparência de inocente flor, sê a serpente sob esse disfarce”.

O Ministério Público brasileiro se agigantou depois da Constituição Federal de 1988. Era, basicamente, o titular da ação penal pública. Hoje defende a ordem jurídica, o regime democrático, os direitos sociais e individuais indisponíveis, promove inquéritos e ações civis públicas para proteger o patrimônio público, o meio ambiente, o consumidor. Defende populações indígenas, exerce o controle externo da atividade policial e um sem-número de outras atividades.

Apesar de tantas atribuições queria mais: o poder de investigar. A Constituição é claríssima ao prever que MP poderá requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, desde que fundamentadamente. Investigar sempre foi atributo da polícia judiciária.

E conseguiu. Em 2015, o plenário do STF, num recurso extraordinário com repercussão geral, apesar de entendimentos diversos, conferiu-lhe o poder de investigação. Embora tenha acolhido sugestão do ministro Celso de Melo para que algumas regras devessem ser obedecidas, na prática pode fazer o que bem entender.

Profeticamente disse o Ministro Marco Aurélio: “O Ministério Público como destinatário das investigações, deve acompanhar o desenrolar dos inquéritos policiais, requisitando diligências, acessando os boletins de ocorrências e exercendo o controle externo. O que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas”.

O vidente acertou, a prova maior é que os delegados de polícia desapareceram. A eles foi relegado um papel menor nas tais forças-tarefa, tanto que a personagem mais conhecida de seus quadros não é um delegado e sim um agente policial, hoje aposentado, o ‘japonês da federal’.

Os casos mais midiáticos estão a cargo do MP, que pode escolhê-los livremente. Para os delegados de polícia estão reservados os casos dos programas populares. Alguém já viu promotor ou procurador investigando assaltantes que explodem caixas de banco?

Agora o parquet quer ser maior que o Judiciário. A polêmica se o STF pode ou não investigar é artificial. A intenção é fragilizá-lo ao divulgar ‘documentos’ de seus componentes e familiares e estimular um exército psicopata componente de redes sociais a cometer os mais diversos abusos de mão própria ou não.

Além disso, apareceu o pacote Moro com a não obrigatoriedade da persecução penal para crimes com pena máxima inferior a 4 (quatro) anos, desde que não praticados com violência ou grave ameaça, além da barganha penal para todo e qualquer crime após o recebimento da denúncia e até o início da instrução.

O incrível é que pesquisas apontam que os magistrados aceitam ser carimbadores malucos, pois a proposta tem um índice de aprovação superior a 90%. Resta uma dúvida hamletiana: os juízes não querem mais julgar?

A investigação feita pelo Supremo provocou um descabelamento geral, os chamados jornalistas jacobinos, que têm sérias pretensões ao saber jurídico, descobriram o sistema acusatório.

A rigor, são 3 sistemas: o inquisitorial, que concentra numa única pessoa, a do juiz inquisidor, a função de investigar, acusar, defender e julgar, sendo que o acusado não é sujeito de direitos e sim objeto do processo; o acusatório, que separa em 3 partes distintas o processo, acusação, defesa e juiz, este equidistante das partes e imparcial; e o misto ou francês, assim chamado em decorrência do Código de Instrução Criminal criado por Napoleão em 1808. Nele, o Processo se divide em duas fases. Na primeira, há o inquérito, sem contraditório. Na segunda, a atuação das partes e do Juiz. Segundo o doutrinador Renato Brasileiro de Lima, “atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro”.

O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 adotou claramente o sistema misto, ou seja, bipartido, com uma fase investigativa e outra acusatória onde o Ministério Público apresenta a ação penal em juízo. À unanimidade os doutrinadores dizem que a Constituição de 1988 acolheu de forma explícita o sistema acusatório, acabando com o sistema misto. Não é bem assim. Há exceções claríssimas:

A) O Ministério Público, por decisão do STF, pode investigar e ao mesmo tempo oferecer ação penal;

B) O Ministério Público pode investigar seus membros que cometerem crimes e denunciá-los (Lei Complementar 75 e Lei Orgânica 8625);

C) O Judiciário pode investigar seus membros que cometerem crimes e depois julgá-los (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e;

D) O STF deverá instaurar inquérito para apurar infração à lei penal cometida na sede ou dependência do Tribunal, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, e, nos demais casos, poderá instaurar o inquérito (artigo 43 e parágrafo primeiro de seu Regimento Interno).

Uma objeção que os opositores do inquérito fazem é que os crimes não foram cometidos nem na sede nem na dependência do Supremo. Esse argumento é duvidoso. Primeiro porque com o advento da internet a ofensa pode ser praticada em qualquer lugar e atingir a pessoa perfeitamente dentro do local de trabalho, e, segundo, e mais importante, nos demais casos, ou seja, quando a autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição é agredida penalmente fora da sede ou dependência do Tribunal, pode este instaurar o inquérito. Assim em uma hipótese há uma obrigatoriedade e, na outra, uma faculdade, ambas acolhidas pelo nosso ordenamento jurídico.

A objeção seguinte é que o Regimento Interno não tem força de lei e que não foi recepcionado nesta parte pela Constituição de l988.

Houve uma discussão semelhante quando se debateu na Suprema Corte se caberiam ou não os embargos infringentes previstos no artigo 333, I, do RISTF, quando do julgamento do ‘mensalão’. O voto precioso do Ministro Celso de Mello concluiu que não houve derrogação tácita ou expressa daquele artigo, remanescendo a possibilidade de sua interposição nas ações originárias.

De sorte que sou também favorável a que no Brasil se adote o sistema acusatório puro. Polícia investiga, Ministério Público acusa e Judiciário julga. Mas, enquanto não houver a alteração, por que só o Supremo não pode investigar, se até outras cortes inferiores podem fazê-lo?

Lady Macbeth, uma das grandes vilãs da literatura mundial, já sussurrou para seu traidor esposo que o regicídio se aproxima. Está na hora de o Supremo decidir se prevalecerá a lei ou os fora dela. O poder de conter os transgressores está inicialmente com o Ministro Alexandre de Moraes.

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