quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A divisão de poderes e o poder dividido, por Demóstenes Torres


Plenário do STF durante abertura do ano judiciário 2020 Sérgio Lima/Poder360 
Em artigo publicado pelo Site Poder 360, o ex-senador e promotor público aposentado, agora advogado, Demóstenes Torres, fala sobre a divisão dos poderes e os poderes divididos fazendo uma analise dos conflitos internos do poder judiciário 

Veja o artigo 



Anteontem, 3º dia do mês de fevereiro do corrente ano, foram abertos os trabalhos legislativos. Discursaram os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado. O presidente Jair Bolsonaro foi representado pelo seu vice, General Hamilton Mourão. 


O discurso do ministro Dias Toffoli, do STF, centrou-se em enfatizar os avanços civilizatórios ocorridos no Brasil nos últimos 36 anos e a contribuição do Poder Judiciário para que eles pudessem ser alcançados. 

Destacou, também, a importância de gerar confiança, previsibilidade e segurança jurídica, pilares que sustentam o sistema de Justiça e que hoje parecem extremamente fragilizados. Mas a atenção deve ser dirigida para a invocação da necessária harmonia entre os poderes, que se sabe muito abalada. E não sem razões. 

Clara conquista da sociedade brasileira, o texto que trata do juiz das garantias foi suspenso pelo ministro Luiz Fux, em janeiro deste ano. A decisão, monocrática, substituiu outra decisão, também singular, proferida pelo ministro Dias Toffoli, quebrando uma tradição da Corte de que apenas o plenário poderia reformar as decisões proferidas monocraticamente. 


As razões dadas pelo ministro Fux para justificar a suspensão vão desde uma suposta inconstitucionalidade por aspectos formais à inexistência de previsão orçamentária, impossibilidade de implantação do sistema, falta de evidências que comprovem que a sua implementação aumentaria a imparcialidade do juiz, etc. 


O fato foi interpretado como expressa ingerência do Poder Judiciário na atividade legislativa, o que fez o presidente da Câmara manifestar, com indignação, que a suspensão do juiz das garantias foi “desnecessária e desrespeitosa” com o Congresso Nacional. Talvez o tenha sido também com o próprio Supremo. Segundo noticiado pelo Poder360: 

“Rodrigo Maia afirmou: ‘Espero o retorno do presidente Toffoli [que está em férias] para restabelecer o diálogo e o equilíbrio na relação entre os Poderes’.” 

Contudo, para mim, de maior gravidade são as audiências públicas convocadas para discutir o juiz das garantias, nos dias 16 e 30 de março. E isso porque a audiência pública em ADI, prevista na Lei 9.868/1999, só pode ser invocada quando haja a “necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos”, o que não parece ser o caso. 


A 1ª realizada pelo Supremo Tribunal Federal se deu na ADI 3510, que versava sobre a Lei de Biossegurança. O relator da ação, ministro Carlos Ayres Brito, pretendia obter informações de especialistas sobre o tema pela necessidade de esclarecimento fático, pois a discussão extrapolava o âmbito meramente jurídico. Para se chegar à decisão, era necessária a produção de outros elementos. 
Evidente o acerto da convocação da audiência, naquele caso. O objeto da ação era a (in)constitucionalidade da utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, e os especialistas participantes puderam elucidar questões importantes para o ensejo da demanda, tais como a própria delimitação do início da vida, em termos científicos. 

No caso do juiz das garantias, a questão é totalmente oposta. Afinal, quais sãos os fatos que necessitam de esclarecimento? E quais especialistas poderão ser convocados, se não juristas? A matéria, a meu ver, é estritamente jurídica. São, portanto, inadmissíveis e até mesmo perigosas as audiências convocadas. E o seu perigo decorre da sensação de que o Poder Judiciário, neste caso, reabre a discussão legislativa, sem qualquer representatividade que a legitime. É a harmonia suplicada na abertura dos trabalhos legislativos que está em jogo. Inverte-se, com isso, a lógica democrática, alterando-se a sua função majoritária, que passa a se submeter ao controle de órgão contramajoritário sem qualquer representatividade. 

A execução de tarefas típicas do Legislativo, infelizmente, não é novidade. Em junho do ano passado, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e o Mandado de Injunção 4733, a maioria do Supremo entendeu por tipificar a homofobia e a transfobia, por analogia à Lei do Racismo. Não há dúvidas de que tais condutas merecem ser reprovadas penalmente, mas isso deve ocorrer no âmbito do parlamento, não criando delitos por decisão judicial (pelo princípio da reserva legal, só se considera criminosa uma conduta expressamente prevista em lei). 

Como se vê, o Judiciário contribui de maneira decisiva para o desequilíbrio na independência dos poderes. Mas o problema não se limita a essa tensão. Alguns atos, como o da revogação monocrática de decisões entre membros do Supremo, evidencia uma tendência de quebra da unidade interna do Poder Judiciário. A Corte deixa de se expressar por meio da manifestação conjunta de seus componentes, dando lugar a conflitos individuais. Com isso, divide-se o poder, causando a sua deterioração e, por consequência, insegurança jurídica. 

É necessário resgatar a harmonia entre os poderes, separando-os de forma adequada, de modo que cada qual exerça a função que lhe compita na estrutura estatal. No entanto, também se faz importante restabelecer a unidade interna de cada um, evitando-se a prática de atos que, como diz reiteradamente o ministro Marco Aurélio, provocam a autofagia da Suprema Corte. 

Que o ano seja harmônico. 


Autores 




Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. 


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