quarta-feira, 14 de outubro de 2020

André do Rap, Bretas e Gaeco: o problema exposto, por Demóstenes Torres


MP deve se pautar pela legislaçãoSTJ manteve condenação de André do Rap, considerado 1 dos líderes do PCCreprodução


Em 1987, entrei no Ministério Público. Como todo e qualquer jovem que inicia uma carreira jurídica, nutria em mim a vontade de contribuir para um país melhor. Combater a criminalidade, trabalhar por um mundo menos desigual e mais solidário eram alguns dos propósitos que me moviam. No entanto, essa luta acontecia sempre com respeito às leis e à Constituição. Lembro-me que os promotores de justiça de minha época pautavam as suas condutas em dois alicerces: a estrita observância da lei e a inquestionável deferência ao Poder Judiciário.

Três fatos ocorridos na semana passada me fizeram aflorar essas memórias. O primeiro foi a palestra proferida pelo Juiz Federal Marcelo Bretas para a Alma Premium Brasil. A revista eletrônica Conjur noticiou-a, com o seguinte título: “‘Prisões e condenações não são importantes para nós’, diz Marcelo Bretas”. Quando li a chamada, confesso, imaginei que Bretas teria acordado, enfim, para a realidade. Jurava que o juiz diria ser o cumprimento das leis o que importa para “eles” –os demais sujeitos também me deixaram inculcados: eles, quem? Mas não. O que interessa é, segundo o palestrante, “expor o problema”. Quer dizer, expor investigados e réus a um linchamento moral. É isso o que importa. É isso o que vale.

O segundo fato foi o enfrentamento feito pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de Goiás contra o Tribunal de Justiça. Como é de amplo conhecimento, a 1ª Câmara Criminal do TJ-GO trancou investigação em que se apurava supostos ilícitos cometidos pelo Padre Robson. O brilhante voto que conduziu o julgamento foi proferido pelo sempre sereno e lúcido Desembargador Nicomedes Borges. Segundo o relator, os fatos investigados são atípicos. Podem ser qualquer coisa, menos crime. Alvissareira a postura do Poder Judiciário, pois coloca freio firme nas aventuras persecutórias dos órgãos estatais.




Mas, para parcela do Ministério Público, parece que não há mais regras a serem observadas. Dois dias após o julgamento, como um ato de preparação para o recurso (embargos de declaração) a ser apresentado ao próprio relator, fizeram uma “live”, discutindo a decisão. Também concederam entrevista à TV Brasil Central, onde tentaram demonstrar o “equívoco” do Tribunal de Justiça; ao Jornal Popular, afirmaram a existência de outros ilícitos, em tese, praticados pelo religioso. Em três atos, criticaram o Poder Judiciário e levaram para a plateia a discussão, numa nítida tentativa de intimidar o relator por meio do apelo popular.

Com esse episódio, pude perceber que o MP agiu exatamente como Bretas indicara em sua palestra: “expondo o problema”. Expor o problema, assim, é um neologismo para “descumprir a lei”.

Ora, só alguém muito pouco alinhado à realidade pode admitir como correta a exposição de determinada pessoa nas mídias, logo após o Poder Judiciário determinar o trancamento de uma investigação. Evidente que cometeram infração disciplinar e, quiçá, até mesmo ilícitos de natureza penal. No entanto, isso não importa. O que importa é “expor o problema”: expor o investigado; a sua vida; a sua família; as suas finanças; expor tudo o que a Constituição Federal quer proteger; negar ao alvo a qualidade de sujeito de direitos.






Reconheço que a composição atual do Gaeco de Goiás é bem mais ajuizada do que as anteriores. No entanto, ainda se deve aprender que o processo judicial é um jogo –com regras legalmente preestabelecidas –no qual, em regra, uma parte vence e a outra perde. Ao sucumbente, resta recorrer para a instância superior. Discutir o julgado na imprensa é mero ato de exibicionismo, que tenta incitar a população contra o Poder Judiciário.

O terceiro fato é a avalanche de críticas recebidas pelo ministro Marco Aurélio, após liminar em que mandou soltar “André do Rap”, com base no artigo 316, parágrafo único, do CPP (Código de Processo Penal), por ausência de reavaliação de sua prisão preventiva após 90 dias. Um dos promotores que atuam no caso logo deu entrevista dizendo que a decisão “era uma vitória do PCC”. O ministro presidente, logo em seguida, atendeu a pedido do MP e suspendeu a ordem do colega, alegando “risco à ordem pública” e dizendo que a tarefa de reavaliar a custódia do preso cabe ao magistrado de primeiro grau. Então, vejamos o que diz o dispositivo:

“Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.”

A afirmativa de Fux está correta, pois a letra da lei não titubeia: o “órgão emissor da decisão” deve revisá-la. Mas a consequência também é clara, porque, se ele não o fizer, a prisão se torna ilegal. E a quem compete declarar essa ilegalidade? Qualquer magistrado com hierarquia superior. Nesse caso, ante a negativa dos que lhe antecederam, o ministro Marco Aurélio mandou soltar imediatamente o sujeito – consequência óbvia de toda prisão ilegal.

Tais episódios denunciam algo mais grave, que transcende os casos específicos. Mostram a cultura do desapego à lei e, sobretudo, do desrespeito crescente às decisões judiciais que não se convergem com a postura punitivista. Caminhamos a passos largos para um Estado anômico, onde o cumprimento da lei é o comportamento desviado; onde o império do direito cede espaço a um império freudiano dos desejos.

Creio que foi a televisão que tornou astros os ministros do STF. Uma decisão hoje é discutida “acadêmica” e “profundamente” por jornalistas e os influenciados. Como lembrava Adoniran Barbosa: “Coisa que nós não entende nada”. Em consequência, quem cumpre a lei é apedrejado e o que “joga para a galera” será aplaudido nas ruas. O tempo do cuidado acadêmico é de priscas eras. O negócio mesmo é bombar os músculos e atrofiar o cérebro. Afinal, pensar para quê? Bretas, Gaeco e Fux já bateram o martelo. Direito é bobagem, o negócio é expor o problema.



Autor


Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. Escreve sempre às quartas-feiras.


nota do editor: os textos, fotos, vídeos, tabelas e outros materiais iconográficos publicados no espaço “opinião” não refletem necessariamente o pensamento do Poder360, sendo de total responsabilidade do(s) autor(es) as informações, juízos de valor e conceitos divulgados.


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