quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O drible no abuso de autoridade, analisa Demóstenes Torres

Nos meus mais de 30 anos de atuação no Ministério Público, só tive a oportunidade de me deparar com denúncia de prática de crime de abuso de autoridade em duas ocasiões, uma como promotor de Justiça, e outra já como procurador; ambas versavam sobre crimes praticados por policiais militares. A literatura é muito restrita acerca da prática desse crime por parte de juízes e membros do parquet, o que equivale a dizer que raramente essas autoridades são processadas.
E assim continuará a ser, por uma razão muito simples: como é um crime praticado por detentor de prerrogativa de foro (privilegiado), sempre no exercício de suas funções e em decorrência delas, mesmo com o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, ambos poderão ser responsabilizados com a ótica menos radical de procuradores mais experientes e julgadores com igual calibre de tempo e responsabilidade.
Pode-se dizer que essa lei “não pegou” e que a futura lei de abuso de autoridade, oriunda do PL 7.596-A, de 2017 (ora Autógrafo de Lei), caminhará por um destino mais íngreme que a atual, por conta de uma esperteza do Ministro da Justiça, Sergio Moro. Explica-se.
Moro faz crer, há muitos incautos, especialmente advogados criminalistas de altíssimo coturno e a grande imprensa, que o artigo 9º do referido Autógrafo trata-se de uma inovação legislativa com o objetivo de interferir no trabalho do magistrado. Diz o dispositivo:Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único.
Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:
I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;
II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;
III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.
Observem o disposto na vigente lei de abuso de autoridade:
Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
1. a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
[…]
1. d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;
O Bardo de Curitiba, visando se passar pelo salvador da Magistratura e do Ministério Público, fez nota técnica, encaminhada à Câmara dos Deputados, suplicando que fosse suprimida tal medida, nos seguintes termos:
“O artigo em questão elimina a discricionariedade do magistrado na exegese normativa. A limitação ao exercício da função jurisdicional é acentuada em razão de o dispositivo não trazer balizas para o que se poderá considerar ‘desconformidade com as hipóteses legais’. Note-se que a evolução do direito, dos costumes e, portanto, a mudança do chamado standard jurídico cria, ainda, uma zona cinzenta pela qual o magistrado deve caminhar para viabilizar a compatibilidade entre a norma e a sociedade. Em última instância, o dispositivo depõe contra a própria dinâmica e evolução do direito pela via jurisprudencial.”
Tais fatos já são típicos desde 1965 e não houve um minuto sequer, durante esses quase 54 anos, em que os agentes públicos mais graduados da Justiça e sua função essencial, reclamaram da ofensividade desses dispositivos legais. E olha que não tinha a ressalva do parágrafo 2º do artigo 1º:§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
Ao recomendar o veto ao artigo 3º do Autógrafo, Moro diz que “os parágrafos desse artigo apenas repetem o que já é norma geral no artigo 29 do Código de Processo Penal”. E o que dizem tal artigo e seus parágrafos?
Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.
§ 1º Será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
§ 2º A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.
Comparem com o que preceitua o art. 16 do diploma atual:
Art. 16. Se o órgão do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo fixado nesta lei, será admitida ação privada. O órgão do Ministério Público poderá, porém, aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva e intervir em todos os termos do processo, interpor recursos e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
Moro parece querer evitar a ação penal privada subsidiária da pública. Podem todos dormir tranquilos; essa modalidade de ação é também praticamente inexistente. O que há aqui é a tentativa de um pequeno golpe hermenêutico: se essa descrição existe na lei vigente e for erradicada na que está sob a apreciação presidencial, poder-se-á dizer que, por se tratar de norma específica, cuja previsão o legislador extirpou, não se poderá aplicar a norma genérica, do Código de Processo Penal.
Num passo adiante, há o desejo de veto ao artigo 13, principalmente ao inciso III:

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:
I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;
II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;
III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.
O inciso II já é previsto atualmente na lei de abuso de autoridade:

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
1. b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;
A justificativa apresentada foi:
“O dispositivo em questão é marcado por uma forte carga subjetiva que é capaz de prejudicar o exercício da atividade policial. Esse é o caso, por exemplo, do recurso à expressão ‘redução de sua capacidade de resistência’. Ademais, o inciso III é bastante impreciso, ao tratar do uso da força para “produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”. Levado ao extremo, esse dispositivo pode afastar a obrigação legal de o preso a fornecer impressões digitais.”
Um raciocínio dessa monta é digno de um Idi Amin Dada. O pianista infrator sempre foi submetido a essa prática, e nunca houve qualquer reclamação judicial a respeito, mesmo porque, desde a entrada em vigor da Lei 12.037, de 1º de outubro de 2009, a identificação cível passou a ser a regra e substitui a criminal, que, quando necessária, inclui processo datiloscópico:
Art. 1º. O civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei.
Art. 4º. Quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado.
Art. 5º. A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação.
O ministro da Justiça quer também a supressão do artigo 17, que diz respeito a emprego de algemas por parte de policiais contra o preso:
Art. 17. Submeter o preso, internado ou apreendido ao uso de algemas ou de qualquer outro objeto que lhe restrinja o movimento dos membros, quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, internado ou apreendido, da autoridade ou de terceiro: […]
E fundamenta seu pleito da seguinte forma:
“A necessidade, ou não, do uso de algemas depende da avaliação policial no momento da operação e leva em consideração, entre outros, questões ambientais, força física, existência de reforço policial, probabilidade de ataque. Ao ignorar as nuanças de cada caso, o dispositivo em questão coloca em risco não apenas a capacidade de levar a cabo o aprisionamento, a integridade física do policial e, o mais relevante, a segurança pública. Por esse motivo, deve ser suprimido.”
É mera afronta ao Supremo Tribunal Federal, que editou a Súmula com efeito vinculante número 11, adiante transcrita:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Tanto o projeto quanto a Súmula abrem espaço para que a polícia decida se vai ou não usar as algemas, dentro de determinadas balizas. Não há nenhum passo a mais que desconheça a peculiaridade do “caso a caso”. A ideia do veto é mero populismo judicial.
A sugestão de veto ao artigo 20 é assim vazada:
“O dispositivo em questão trata de criminalizar condutas que afetem o direito de defesa na sua expressão técnica, isto é, a conversa com o advogado. Apesar da louvável iniciativa, é importante restringir o alcance do tipo penal para evitar a investigação e intervenções em casos nos quais o advogado integra a organização criminosa, é partícipe de uma conduta delituosa pontual ou serve de intermediador de ordens de presos para o mundo exterior.”
E o que é o “dispositivo em questão”?
Art. 20 Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência.
Está-se diante de picuinha contra o exercício da advocacia criminal, posto que, se o advogado for membro de organização criminosa, estaria fatalmente preso junto com seu cliente, ou então a autoridade que impedisse tal entrevista, não dispondo de qualquer evidência a esse respeito, poderia ser levada à condição de medium vidente, uma verdadeira “Mãe Dinah”.
O ex-membro da “República de Curitiba” quer também a extirpação do artigo 22, que preconiza:
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§1º Incorre na mesma pena quem, na forma prevista no caput:
I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;
II – executa mandado de busca e apreensão em imóvel alheio ou suas dependências, mobilizando veículos, pessoal ou armamento de forma ostensiva e desproporcional, ou de qualquer modo extrapolando os limites da autorização judicial, para expor o investigado a situação de vexame;
III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h00 (vinte e uma horas) ou antes das 5h00 (cinco horas).
§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.
E esclarece:
“O dispositivo criminaliza a atuação fora dos limites do mandado judicial ou demais hipóteses previstas em lei, como flagrante delito, nos casos de cumprimento de ordem em imóvel alheio. O caput é suficientemente amplo e abarca as ilegalidades cometidas na execução de ordens de busca e apreensão, restando ao juiz do caso analisar se os fatos ultrapassaram os limites de sua autorização. Nesse contexto, o inciso II carece de precisão e traz muito conceitos indeterminados e subjetivos como ‘desproporcional’ e ‘situação de vexame’ e não deve ser mantido, sob pena de causar insegurança no cumprimento dos mandados judiciais com o receio de incorrer nesses elementos abertos. Assim, sua manutenção prejudicaria o próprio objetivo do tipo penal, que é zelar pela lisura da atuação nos casos de busca e apreensão.”
Será que são mesmo subjetivas as expressões “desproporcional” e “situação de vexame”? Parece que qualquer estudante da primeira fase do Ensino Fundamental seria capaz de defini-las, ou não?
Moro também quer a exclusão do artigo 26:
Art. 26. Induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das hipóteses previstas em lei: […]
E dá uma longa explicação:
“Uma vez mais, a criminalização da conduta pode afetar negativamente a atividade investigativa, em razão de a autoridade investigativa atuar, muitas vezes, em uma zona cinzenta na distinção entre flagrante preparado e flagrante esperado. É o que se pode inferir, por exemplo, da seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:
‘Quanto à segunda alegação, em que requer seja reconhecido o flagrante preparado, tenho para mim ser de todo irreparável a decisão proferida pelo STJ que assentou: o fato de os policiais condutores do flagrante terem se passado por consumidores de droga, como forma de possibilitar a negociação da substância entorpecente com o ora paciente e demais corréus, não provocou ou induziu os acusados ao cometimento do delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, sobretudo porque o tipo do crime de tráfico é de ação múltipla, admitindo a fungibilidade entre os seus núcleos, consumando-se, apenas, com a guarda da substância entorpecente com o propósito de venda, conforme restou evidenciado na espécie. [HC 105.929, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T, j. 24-5-2011, DJE 107 de 6-6-2011.]’. Conquanto haja a expressa ressalva das hipóteses previstas em lei, o que tornaria lícita a figura do agente provocador proposto do PL 882/2019, a aprovação desse dispositivo pode causar insegurança no exercício da atividade policial, prejudicando a eficiência da persecução penal como um todo. Por essa razão, pugna-se pela sua supressão.”
Uma vez mais, ele conta com a ignorância alheia, já que o flagrante preparado, aquele que todos sabem que não configura crime, deve mesmo ser tipificado. As argumentações de Moro não fazem qualquer sentido porque já há a hipótese prevista em lei de infiltração de agentes, desde que previamente permitida por autoridade judiciária. E pior, a citação de acórdão do ministro Gilmar Mendes é absolutamente descontextualizada, já que, no caso mencionado, os policiais, que se passaram por consumidores, queriam apreender a droga armazenada para venda. O culto ministro do Supremo, ao saber que suas sábias palavras foram usadas para fim tão torpe, pode até passar mal.
O artigo 34 do Autógrafo preceitua:
Art. 34. Deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, com competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento: […]
E as razões do pedido de veto:
“A hipótese cria uma responsabilidade extremamente ampla ao agente público que é impossível de ser cumprida na prática. O conceito de ‘erro relevante’, extremamente amplo, pode abarcar situações diversas, a depender do referencial. Além disso, o crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal já abarca as hipóteses mais graves de omissão na prática de atos de ofício pelo servidor público. Assim, não é necessário criar uma nova tipificação sobre o tema.”
E o artigo 319 do Código Penal:
Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Não precisa ser bacharel em Direito; com uma simples leitura, qualquer rábula compreende que um dispositivo não tem nada a ver com o outro.
E, finalmente, o artigo 43:
Art. 43. A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 7º-B:
“Art. 7º-B. Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II a V do caput do art. 7º:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”
O Bardo:
“Este artigo deve ser excluído, porque gerará um fortalecimento extremo do Ministério Público e um enfraquecimento do juiz, que perderá a sua imparcialidade. Com efeito, a cada representação feita contra o juiz, este verá sua conduta submetida à avaliação do MP. Para angariar a simpatia do Promotor e livrar-se de incômodos, como responder pedidos de explicação ou até uma ação penal, não hesitará em deferir todos pedidos do órgão da acusação. Isto acabará por desequilibrar a igualdade de tratamento que devem merecer as partes, com manifesto prejuízo à defesa.”
Ou seja, seria uma oficialização de conluio entre magistrado e membro do Ministério Público. Como ninguém nunca ouviu falar nesse tipo de conduta, deixa-se de comentar. Além da notória aversão às prerrogativas da advocacia.
Como em toda lei, ao fim, revogam-se outras disposições. Neste caso, a Lei 4.898/65, que atualmente dispõe sobre abuso de autoridade:
Art. 44. Revoga-se a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965 […]
Aí está o drible de Moro. O diploma atual será totalmente revogado, incluindo a parte que já prevê penalização para juiz que ordena medida privativa de liberdade sem as formalidades legais ou com abuso de poder. Ao mesmo tempo, se Bolsonaro acolher as sugestões de vetos, a futura lei de abuso de autoridade será um imenso oco, sem nada que afete juízes, promotores e delegados. Sobrará, como sempre, para as autoridades de menor expressão e os políticos.
Lamentavelmente, líderes de associações dessas classes jurídicas, membros do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça não costumam ler nada, especialmente o que criticam; caso contrário, já estariam no Vaticano, entre foguetório e fandango, pedindo ao Papa Francisco para que o ministro seja canonizado e se torne São Moro, imediatamente. Já Bolsonaro deve pôr suas barbas de molho porque está nascendo um novo candidato a presidente da República, que já conta com maior popularidade que ele e com respaldo integral do sindicalismo jurídico.
Cuidado, presidente, lembre-se do que diz Maquiavel: “Há três espécies de cérebros: uns entendem por si próprios; os outros discernem o que os primeiros entendem; e os terceiros não entendem nem por si próprios, nem pelos outros; os primeiros são excelentíssimos; os segundos excelentes; e os terceiros totalmente inúteis”.

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